maio 30, 2006

Preços

Um cérebro grande, como um governo grande, pode não conseguir realizar coisas simples de forma simples - Donald Hebb (1958)

maio 29, 2006

Memórias, Padrões...

A Estatística é um compactar semântico unidireccional. Kong sénior, mesmo após o ruir de memória que se forma na passagem de quase dez anos, ainda se lembra desta frase do Doutor Spleen. São já, hoje, duas horas na leitura e recorte de anúncios de jornal e a sua mente à volta nessas palavras. Para o Doutor Spleen, a Estatística é o ramo mais estranho do conhecer humano. Qual a utilidade de um padrão? Ou de outra forma: é necessário ao Universo essa ordem que pressupomos? Como suster uma teoria (e com o sucesso irrefreável que lhe reconhece) nessa difusa rede de contingências, de quebras causais que a realidade fabrica e, mesmo assim, recolher certezas matemáticas nesse fervilhar de probabilidades? A Kong sénior estas impressões filosóficas e a obsessão que lhes deu origem não são em particular pertinentes apesar do ritual diário que ele, o seu irmão e Dabila são forçados a manter. Lembra-se, no início, do Doutor Spleen referir qualquer coisa sobre infecções, sobre o reflexo que delas se vislumbra no singular dos factos isolados. Mas dez anos são um trabalho de demolição eficiente. O construir do presente não se coaduna assim tanto com a conservação do passado.

maio 25, 2006

Criação

Num Universo morto, onde existam apenas estrelas, gravidade, vácuo, buracos negros, não existe significado. Não é o caso do nosso. Pelo menos, a Terra é uma enorme fonte de criação de sentido. De onde vem esse sentido? No princípio da vida, nos objectos químicos percursores das proteínas, do RNA, das proto-bactérias, antes de existir um ambiente suficiente complexo para albergar a possibilidade de vírus, não existia função. O mundo continha dentro de si gerações de robots orgânicos que manipulavam repetidamente o ambiente e dificilmente algo mais. Mas erravam (afinal, a consequência inevitável de fazer algo). Se fosse possível a escolha, um robot preferiria não errar pois o erro paga-se, quase sempre, com a destruição (nessa altura, com a desagregação química). Mas essa escolha não é possível e, assim, alguns desses erros abriram a possibilidade de novos objectos, de novos robots. O interagir desta variação com o mundo permitiu colher os 'benefícios' da evolução. Os milhares de milhões de iterações conduziram a uma elaboração progressiva da estrutura desses objectos (que resultaram, por exemplo e num estágio já muito avançado, ao surgir da célula). Alguns desses robots, que participavam cegamente nessa organização maior que os confinava, tornaram-se essenciais a determinadas tarefas do seu funcionamento, i.e., começaram a ganhar função e, em consequência, a ganhar sentido. Nestes erros uma porta para a vida, para a semântica das coisas e, muito muito depois, para nós.

maio 23, 2006

Sacrifício

Para sacrificar a correcção que seja ao humor.

maio 22, 2006

Opções

Existem problemas filosóficos intrinsecamente subjectivos. Quem se preocupa hoje em discutir se a realidade sensorial é real ou ilusória? Outra polémica um pouco pateta é a do livre arbítrio. Na opinião do Doutor Spleen, basta acreditar que se tem livre arbítrio para o problema desaparecer num banal puf metafísico. Um pouco como a dor de cabeça que lhe assola o crânio. Um médico no melhor hospital privado do país assegura-lhe que os exames (porque naqueles exames o cristalizar de uma tecnologia de biliões em investigação aplicada por milhares de talentos científicos) nada indicam de errado. A única explicação lógica, afirma, é não existência da dor de cabeça. A estupidez que provém da ignorância (ou da ingenuidade, que vai dar ao mesmo no que toca às consequências) não tem limites, pensa Kong Sénior enquanto anota a matrícula do Porsche do senhor doutor.

maio 19, 2006

Travessia

Somos padrões de informação em casulos orgânicos. O material que nos compõe, o mesmo que pavimenta a crosta arrefecida deste planeta, nada tem de especial; o sermos um padrão também não. A diferença é ser possível a estes rendilhados (de memória, raciocínio, genes, cultura) entenderem o que são.

maio 16, 2006

Segredo


Que máscara tua não verga à plateia que te defronta?

maio 15, 2006

Relatividade

Kong júnior trava o carro, desliga o motor de 215 cavalos e o mundo lá fora pára de andar para trás. Cada uma das quatro portas a rodar e todos no pátio anteriormente vazio. Kong sénior abre a mala do carro e retira, elevando-o como um garrafão de água (ou dois, talvez), um homem que já não é mais que um débito irreparável. O Doutor Spleen retira o alicate polonês do bolso e, através dos gritos mudos pelo pano molhado na boca, inicia um processo de remodelação física da dívida encarnada. São duas da manhã mas o tempo passa com diferentes nuances psicológicas a cada um dos cinco personagens: os irmãos Kong inquietam-se com o nível de óleo do BMW, passado já mais de dez mil quilómetros da suposta revisão e Dabila sente-se, enquanto na revista interpreta a carta de Tarot do seu signo, um pouco enjoado pela feijoada do jantar.

maio 12, 2006

Estabilidade

Imaginemos uma sociedade onde existam só pessoas que não saibam mentir. Esta sociedade não é estável no sentido comportamental. Se fosse 'infectada' por um mentiroso, este teria tantas vantagens que tenderia a disseminar o seu comportamento ao resto da sociedade. Até que ponto se extenderia essa infecção? Depende dos valores exactos: (a) de quanto se ganha pela cooperação entre dois indivíduos honestos, (b) do proveito que um mentiroso ganha explorando um honesto, (c) e do custo associado à falta de cooperação quando dois mentirosos interagem. Este género de questão é estudado pela Teoria dos Jogos, nomeadamente pelo conhecido Dilema do Prisioneiro Iterado. Uma população mista de honestos e mentirosos pode convergir para uma percentagem que garanta que invasões futuras de indivíduos com estratégias distintas e exploratórias não sejam lucrativas (designada por estratégia evolutiva estável).

Admitir que uma sociedade totalmente honesta é instável pode ser, para alguns, uma má notícia. Porém, não devemos esquecer a implicação simétrica deste facto: uma população de mentirosos também é instável. Ela pode ser também invadida, não por um só honesto (que seria rapidamente explorado), mas por um grupo de indivíduos honestos que, por cooperação mútua, são capazes de prosperar num ambiente de traição constante. Este raciocínio leva-nos (com alguma liberdade matemática) a outro evento relacionado: um regime totalitário, pela exigência artificial de uniformidade, é igualmente instável. Existe sempre a tendência, em qualquer grupo e de forma mais ou menos velada, de manter abertas outras opções que as dominantes. Uma cultura intolerante, da mesma forma que uma profundamente tolerante, é muito permeável à dissuasão. A pressão social de um Estado totalitário sobre os seus elementos, com o objectivo de manter coesa a ideologia dominante, é, ao mesmo tempo, causa e consequência desse desejo de homogeneidade. E quanto mais energia for gasta para manter uma população isenta de diferenças, mais fácil se tornará a conversão dos seus elementos a outras possibilidades. A notícia que esse esforço seja, mesmo que a longo prazo, inútil é uma verdadeira boa notícia.

maio 10, 2006

Cinzentos

Ser honesto ou falso não são os únicos resultados desse diálogo de máscaras que são as pessoas.

maio 08, 2006

Resoluções Adiadas

Os sonhos são no Homem o ruído que nos aceita qualquer pergunta. Mais. São também a história que atravessa essas perguntas nascidas elas de receios, ânsias ou impulsos retidos pelo difícil do mundo. O Doutor Spleen, de costas para o colchão suíço, observa, com demora e no tecto, os pontilhados aleatórios pelo acumular de humidade. A casa no silêncio de fim de manhã demora a acolher essa viagem onírica de todos os seus dias. O resto dorme, horas passadas, indiferentes às lâminas de luz que cruzam o escuro do quarto (na verdade, também Kong Sénior está acordado e, apesar de manter os olhos fechados, a imaginação percorre uma fantasia pictórica, obscura e demasiado complexa para caber neste parêntesis - é a virtude e o dilema do narrador, pretender saber mais que as suas personagens e, no entanto, dar-lhes a vez possível para as linhas que tem). O Doutor Spleen, entre os padrões que adivinha na humidade, reconhece haver poucas fronteiras menos estimulantes que essa demora arrastada a que se resolveu, um dia, chamar insónia.

maio 05, 2006

Um Equilibrio Flutuante (última parte)

E volta a ansiedade: «Quando é que acaba este processo? Não estaremos na direcção de uma sociedade 100% medicada em que ninguém é responsável e todos são vítimas de um evento passado (genético ou ambiental)?». Não, não estamos. Porque existem forças – não metafísicas mas sociais e políticas – que se opõem a essa tendência. E são do mesmo tipo que impede que, por exemplo, a idade mínima de condução não seja trinta anos: as pessoas querem ser responsabilizadas! Os benefícios esperados que derivam de ser um cidadão por inteiro numa sociedade livre são tais que existe uma forte atracção para se ser incluído. A possibilidade da culpa, da punição e da humilhação pública são preços que aceitamos de bom grado somente para podermos voltar ao jogo depois de termos sido apanhados numa transgressão. E se formos um cidadão respeitado a melhor estratégia para manter a desculpabilização afastada é proteger e realçar o valor do próprio jogo. É a erosão dos benefícios do jogo (não o avanço científico) que podem ameaçar o equilíbrio social (como o slogan soviético a adivinhar o colapso: «eles fingem que nos pagam, nós fingimos trabalhar»).

[adaptado do Freedom Evolves de Daniel Dennet, Penguin Books, 2003]

maio 03, 2006

Paisagem

Na palavra expressa esconde-se uma paisagem raramente pensada. No filigrana de cada frase, na estrutura da sua gramática, o reflexo de um real observado em séculos de civilização. E cada vez que as usamos, de cada vez que elas nos socorrem, esses átomos de língua tecem a rede onde todos nos baloiçamos, pairando acima desse mundo medido assim à nossa imagem.

maio 02, 2006

Sistemas Formais

Gustav Mahler retira-se da aula de piano de Julius Epstein directamente para a avenida (e é toda uma Viena, nesse luxuoso esplendor de capital de império, que o acolhe) nesse frio de tarde onde o sol se fecha atrás das ruas, a pensar como a escala musical, um sistema tão simples, discreto e formal, lhe abre as portas à criação de mundos à sua medida e da dimensão do seu génio (que aos poucos, com a educação que recebe, depreende que tem). Exactamente 140 anos depois, no centro de outra capital europeia, sobre um frio exactamente igual (e apesar da noção de calor ser uma definição termodinâmica que, à partida, não determina uma causalidade com a dinâmica complexa dos pensamentos humanos, não deixa de ser um factor comum que esta narrativa decidiu tomar em conta, para permitir ao leitor um caminho possível, mesmo que improvável, de explicação), o Doutor Spleen considera o mesmo sobre o método igualmente simples, discreto e formal da culinária.