setembro 27, 2006

Ficções

Um modelo científico não é uma tentativa de verdade. É apenas outra injecção de semântica, um atribuir de sentido organizado pela razão sobre o oceano ilimitado e indiferente a que chamamos mundo.

setembro 26, 2006

One way ticket

O Doutor Spleen, com a convicção que se lhe reconhece, avança entre gavetas da biblioteca central. Um quadriculado de madeira e papel, o labirinto onde Kong Sénior e Dabila tentam seguir-lhe os passos rápidos, as guinadas imprevistas, os livros largados no chão como sinais de procura. E fazem-no em silêncio (e nesse espaço fechado em regras soltas de funcionalismo público um ódio cerrado no passado de Kong, um quase fim na repetição de dias onde, numa vida anterior, se deixara levar e que - talvez e falando agora aos nossos leitores - se volte a referir nestes nossos contactos ao mundo de outra forma fechado destas personagens). Em silêncio não por ser proibido ou moralmente discutível falar numa biblioteca, não por não terem nada a dizer mas porque reconhecem a Spleen o aprender que uma palavra solta num momento errado é um imprevísivel fechar de possíveis, uma viagem sem retorno ao compromisso do outro, um encerrar de mundo irreparável.

setembro 21, 2006

Criticalidade

No planeta Ankh foi dominada, há muito, a ciência de detectar e prevenir terramotos. Ao início, esta técnica permitia conter terramotos de grau 6 sendo agora capaz de deter sismos até 8.3 (usamos a escala de Richter por facilidade: para entender como os Ankhianos os classificam obrigar-nos-ia a uma pós-graduação em cores e tonalidades). Mas atenção, dizem certas vozes, cada vez que um tremor é detido, aumenta a tensão resultante na crosta Ankhiana. Seria melhor escolher criteriosamente quais se poderiam deter, mesmo que isso implicasse perdas de propriedade ou civilização. Só que a perspectiva de deixar incólume a destruição natural quando se pode evitá-la não costuma vingar no espírito bem intencionado das multidões votantes. Assim, desapareceram do planeta todos os terramotos menores à custa de sistemas de prevenção cada vez melhor organizados suportados em orçamentos progressivamente crescentes. Mas o desiquilíbrio, invisível, pulsante, aumenta: a dinâmica geológica da crosta acumula tensões tais que resultam, a ritmos anormalmente frequentes, em terramotos de grau 10, 10.5, 11. Estes, porém, não são vistos como facturas de uma política míope, mas apenas como uma face da providência que, por ora, nada há a fazer.

setembro 19, 2006

Nacionalidade

Qual a distância entre o que dizem ser errado e o que dentro de ti te revolta? Da lei escrita o que segues por seguir e da tua, o que te proíbem? Quão estrangeiro és no teu país?

setembro 18, 2006

-ismos

O dar-se primazia a preconceitos de estimação relegando o bem-estar de terceiros tem muitos e variados nomes. Como designar alguém que, idealmente, não o fizesse?

setembro 15, 2006

Teatro

Conversar não é um testemunho passado entre duas ou mais pessoas. Não é a espera alternada com a fala, não é um pêndulo sem fricção. Conversar é um dançar de gestos, de sílabas, de instantes trocados. É um diálogo negociado, uma pauta marcada de sincronias auto-impostas. E nem todos são iguais: há os que são uma tempestade de convicções, de sentimentos que submergem quem os ouve; e há os que são vales, receptores que mudam, sem saber, segundo os ventos que são os outros. E entre quem vende e quem compra esse tecer de crenças há uma posse, um conquistar de espírito nem sempre percebido pelas partes. A poderosa mente analítica do Doutor Spleen é capaz de fragmentar um momento observado e entender-lhe o gradiente, a infecção que nasce de uma conversa dita normal. E sabe que entre o conquistador e o conquistado há, inconsciente, um conhecer tácito deste processo, uma ânsia animal para que essa troca se inicie. Por isso a sua inexpressão, o profundo gélido dos seus olhos, o deserto imóvel dos seus gestos. É mostrar ao outro a diferença, o aparente vazio de pessoa à sua frente, o reconhecer silencioso de um confronto monstruoso.

setembro 08, 2006

Narrativas

As suspeitas nunca terminam, apenas mudam de atenção, pensa o Doutor Spleen enquanto se observa cautelosamente no espelho rachado do que fora, horas antes, uma sala. No chão, uma muda de roupa num canto seco. Nas paredes, padrões riscados de sangue, a impressão final de uma mão (que agora se estende em seis partes desiguais pela vivenda de três andares nesta zona caríssima da cidade), uma mensagem sem significado a ser lida pela ânsia semântica incontida dos especialistas forenses. Ao corpo que resta, a sensação de liberdade que advém do facto consumado e irreversível da morte. Os outros cadáveres, dispostos com precisão geométrica pelas centenas de metros quadrados da habitação, prenunciam - esses sim - um intento de difícil mas não impossível revelação: há sempre que deixar uma possibilidade, um fio narrativo, um padrão honesto de continuidade. No ar fresco da madrugada, ainda sem o cheiro da podridão, uma calma incomum que se espalha, invisível, em redor. Um belo espectáculo para esse atraso sistemático que é a polícia.

setembro 06, 2006

Opções

Remediar em vez de prevenir. Seja sobre nós, seja na remoção sistemática da natureza do mundo, preferimos sempre errar e pedir desculpa depois do que não errar e pedir desculpa antes pelo sacrifício que daí deriva.

setembro 04, 2006

O Efeito de Estufa Ataca de Novo


Em Vénus, as nuvens, de ácido sulfúrico, são atravessadas por tempestades ciclónicas e produzem uma pressão equivalente à do Oceano a 1 Km de profundidade. As temperaturas chegam a atingir os 500º (o suficiente para derreter chumbo) numa superficie preenchida por enormes rios de lava. Vénus é um planeta quase igual à Terra (no tamanho, na densidade, na composição química), apenas um pouco mais próximo do Sol o que permitiu ao efeito de estufa fazer dele um inferno. Na imagem (sem nuvens) vislumbra-se a gigantesca Corona Artemis onde o nosso cérebro nos convida a um rosto.

setembro 01, 2006

A Carne

Os animais, dentro da sua população reprodutiva, são basicamente iguais. Existem pequenos traços, pequenas diferenças que permitem, a um olho progressivamente mais sensível, distinguir alguns de outros (os machos e as fêmeas, os animais dominantes, as famílias) mas comparando o que os assemelha do que os separa, percebe-se que a noção de espécie não se refere somente à estrutura do animal mas também ao seu comportamento. Com as pessoas o assunto complica (como complica em tudo o resto, aliás, mas não façamos disso uma vantagem indiscutível). Com as pessoas, note-se, não com os Homo Sapiens, estes vestígios históricos de uma evolução escondida por detrás da cortina mais ou menos opaca das culturas humanas. Uma população de animais geneticamente próximos é a projecção iterada sobre a normal de Gauss de um fantasma, um animal abstracto que contém a média das características que distinguem essa população. O Doutor Spleen reflecte neste ponto porque imagina como será o fantasma do Homem. A suspeita que lhe perpassa a mente é o reflexo dessa perda que ocorre na histeria e no pânico das massas.