novembro 28, 2006

Conexão

Na travessia não muito repetida daquele corredor, os piores temores do mundo porque inevitáveis. Em cada porta aberta uma espera misturada com éter e urina, um padrão reciclado em cada um daqueles rostos. Na sexta à direita, a mãe, talvez o último elo ao passado (o resto deixado em escritas de carta e amarelos de fotografia numa qualquer gaveta). A alcateia não sabe deste seu destino. Uma qualquer réstia de humanidade é sempre um ponto fraco a explorar e o Doutor Spleen, no que toca à parte que ainda possui e ao que os outros chamam de humano, gere-a com a parcimónia anual de um contabilista. Ali, o silêncio, mesmo misturado com o fedor agarrado às paredes, tem um valor preciso que lhe agrada. À sua frente, nem a dois metros e sozinhos, na profundidade da decadência de Parkinson, ela desconhece quem a visita. Um abismo que separa os dois sofás. Quando nos falha a ponte com o mundo, onde ficamos?

novembro 23, 2006

Nascimento

Se alguém calculasse as probabilidades de cada um de nós estar aqui, no mundo, elas seriam, em qualquer escala, quase zero. Mas nesse quase cabemos todos.

novembro 21, 2006

Nevoeiro

O Doutor Spleen sabe que entre um corte de bisturi há dois mundos que se separam, dois resultados presos num fio de presente. Que entre os ilimitados parâmetros de um instante, apenas um conjunto deles, reduzido mas não vazio, o tornam único. Não se aprecia um corpo através de uma análise espectral das suas componentes ou da interacção química das células que o compõem. Não se entende uma obra de arte por esta obedecer aos ditames da quântica das partículas nem um romance pelo estilo ou dimensão da fonte usada na impressão e uma música é mais que as frequências obtidas na decomposição de Fourier. Todos estes exemplos dizem que o gosto é também um escolher de abstracção, um progressivo retirar de detalhes demasiado finos para obter o grosso modo que nos agrada. Nem sempre é fácil saber quando se pára. E esta decisão, esta difícil fronteira pode ficar aquém para um dos seus dois lados. Ou nos perdemos numa ânsia de precisão sobre o que interessa (ou seja, numa perda, porque nada é perfeito) ou deixamos passar o único desse momento (e tudo se dilui nesse nevoeiro que era o mundo antes das pessoas).

novembro 17, 2006

Cultura e genética (parte II)

Certas espécies de ratos adquirem preferências por comidas a partir de outros ratos. Isto é um tipo de herança cultural: dois grupos de ratos alimentam-se de diferentes comidas e esta diferença é transmitida por aprendizagem. Este mecanismo designa-se por «melhoria local»: os adultos criam um ambiente onde facilitam a aprendizagem dos jovens. Isto contrasta com a «aprendizagem observacional», na qual um animal observa a acção de outro e o copia. A maioria dos animais parece incapaz de aprender por observação mas dificilmente se pode acreditar que toda a transmissão cultural no reino animal se baseia na melhoria local. Por exemplo, em certas zonas da Grécia, há águias que se alimentam de tartarugas. Como são incapazes de lhes quebrar a carapaça, apanham-nas e largam-nas muito acima para caírem sobre as rochas. Parece ridículo afirmar que apenas na Grécia as águias estão programadas geneticamente para fazer isto a tartarugas. Uma águia poderá aprender por melhoria local que há carne por debaixo da carapaça, mas apenas por observação local podem elas aprender a estratégia que lhes dá acesso a essa carne.

A distinção entre melhoria local e aprendizagem observacional é importante porque apenas pelo segundo mecanismo é possível ter alterações cumulativas na respectiva cultura. Por aprendizagem observacional pode-se aprender os velhos truques como também, acaso um individuo encontre um novo e melhor truque, este possa ser copiado pelos restantes. O efeito é uma continuidade na mudança, permitindo que vários possam usar um truque que, de outra forma, nunca teriam oportunidade ou tempo de o obter. [cont.]

novembro 15, 2006

Metamorfose em contra-mão

Na de Kafka, a metamorfose que Gregor Samsa não se deu conta era de corpo, da reacção exterior ao eu por lá preso. Mas quando agimos ou falamos, repetindo e sem pensar o coral do dia-a-dia, quando a resposta que damos não é filtrada pela diferença que nos faz, quanto de nós é ainda insecto? O que nos distingue de meras junções de músculos, esqueleto e sistema nervoso?

novembro 13, 2006

Dádiva

O Dr. Spleen acredita que a noção do mal é um conceito referenciável. Expliquemos. Para a maioria das pessoas (admite ele) a noção de moral resume-se ao cumprimento automático de uma série de preceitos - um regulamento, por assim dizer - onde a acção em questão é imoral ou moral se viola ou não as regras do 'jogo' no qual o sujeito e os outros (estejam eles de acordo ou nem por isso) interagem. Por exemplo, o adultério ou o incesto são imorais porque o regulamento judaico-cristão assim o afirma. Em relação a esta massa de gente, Spleen não vê nenhuma motivação para concordar com um regulamento específico, tenha ele passado na prova dos séculos, na sopa destilada das culturas ou apoiado com maior fervor ou razão numa apologética qualquer. Um acordo regimental é tão válido como outro, e Spleen não precisa de burocracias que lhe atafulhem o ego. Onde Spleen hesita, porém, é naqueles, poucos?, que observam ser a Ética um processo de descoberta, uma engenharia mental, um sangrar que reflecte nos outros os anseios individuais dos nossos medos e vice-versa. Porque de frente a um espelho não há nada de mais corajoso que dar a palavra à imagem que nos imita.

novembro 10, 2006

Cultura e genética (parte I)

[adaptado do livro The Origins of Life de John Maynard Smith e Eörs Szathmáry]

É comum referir a herança cultural como a característica distintiva dos seres humanos, i.e., os indivíduos numa sociedade adquirem as suas crenças e comportamentos, o seu conhecimento e as suas aptidões, através da aprendizagem com as gerações anteriores. Existe, claro, muita verdade nesta ideia, particularmente quando se refere as diferenças individuais ou entre duas sociedades. Diferenças entre as opiniões de duas pessoas não são causadas por diferenças genéticas. A diferença entre Londres agora e Londres no ano 1098 ou entre Londres e Pequim actuais tem motivos culturais e não genéticos. Tendo dito isto, porém, há algumas reservas a fazer. Primeiro, existe alguma herança cultural entre animais, um facto relevante quando se discute a origem da sociedade humana. Segundo, a habilidade dos humanos para aprender, e de construir sociedades baseadas na transmissão cultural, é genética: as sociedade humanas são diferentes das sociedades dos chimpanzés porque humanos e chimpanzés diferem geneticamente. Terceiro, as pessoas aprendem certas coisas mais facilmente que outras: a mente humana não é uma tábua rasa onde a experiência pode definir e escrever sem restrições. [cont.]

novembro 07, 2006

Particularidades

Dizer «os fins não justificam os meios» é uma generalização simpática mas não significa «os fins nunca justificam os meios». Se assim não fosse, como se lutaria, por exemplo, contra o arbítrio de uma lei errada?

novembro 06, 2006

Estética

A estética é um balde que não se enche. O acumular de modas, hábitos e prazeres não esgota o possível do amanhã; facilmente se volta a algo já esquecido e outrora apreciado que renegar, para sempre, um qualquer gosto e, independente do labirinto de escolhas e desistências, há sempre o vislumbre de um caminho. Por exemplo, na culinária o paladar é o fim no qual outros sentidos, o olfacto e a visão são o meio e, no entanto, há sempre algo proibido nessa travessia. Entre a comida que se expõe e a que se digere existe um esconder consciente do processo de transformação: o converter da disposição fotográfica dos alimentos à energia que nos anima, não é geralmente apreciado. Não há fotografias à metade de uma refeição (o horror de um zigurate de arroz destroçado por meteoros em forma de garfo ou um pastel de bacalhau arrasado em dentadas, mesmo que brancas, de alguém) nem do bolbo que formamos entre misturas de saliva e ritmos de maxilar, engolidos em espasmos silenciosos até ao mar de ácidos que nos habita. Quanto ao apreciar estético do Doutor Spleen sobre o reestruturar de uma pessoa, ocorre o mesmo. Facilmente se observa alguém no seu normal, nestes correres de dias que passam. Uns, poucos, observam também os resultados que ele obtém, corpos como o que o Inspector Rousseau irá encontrar, pela manhã, num armazém insuspeito de fitas adesivas. Já a órbita que leva de um normal ao outro é o que Spleen repudia a mostrar a terceiros.

novembro 03, 2006

Esforços

De acordo com a nossa tradição, toda a maldade humana é explicada ou por cegueira e ignorância ou por fraqueza, a inclinação de cedermos à tentação. Nós - segue o argumento - não somos capazes de agir bem naturalmente nem de agir mal deliberadamente. Somos tentados para fazer o mal e é necessário um esforço para fazer o bem. Tão enraizado está esta noção - não através dos ensinamentos de Jesus da Nazaré mas segundo as doutrinas da filosofia moral cristã - que as pessoas normalmente associam o bem com algo que não gostam e o mal como algo que os tenta. [...] É, creio, um facto simples ser igualmente comum sermos tentados a fazer o bem e ser preciso um esforço para fazer o mal. Machiavelli soube isto muito bem dizendo n'O Príncipe que os governantes tinham de ser ensinados a "como não serem bons" e, por isto, não significa que tinham de aprender a ser maléficos mas simplesmente a evitar ambas as inclinações e agir de acordo com motivações políticas - distintas das morais e religiosas - e criminais. Para Machiavelli o padrão com o qual se julga não é o 'eu' mas o mundo - o padrão é exclusivamente político - e é isto que faz com que ele seja tão importante para a filosofia moral. Ele estava mais interessado em Florença do que salvar a alma. Para ele aquelas pessoas mais interessadas na salvação da respectiva alma deveriam ficar fora da política. Hannah Arendt, Some Questions of Moral Philosophy