maio 28, 2007

Uma ou várias amostras?

[«] É possível argumentar que o conceito de mente inclui atributos que não somos capazes de reconhecer noutros animais (e também nas máquinas, poderíamos incluir). No entanto, talvez a maioria dos argumentos, das propriedades que poderíamos listar como diferenciadores, têm sucumbindo após estudos sobre comportamentos de outras espécies. Bastou esgravatar a complexidade das relações de animais comunitários (e aqui quando falo de animais, penso em mamíferos, talvez algumas espécies de aves, não em insectos, peixes, artrópodes, etc. que pouco mais são que robots orgânicos) e das suas capacidades cognitivas em experiências controladas. O Homo Sapiens faz parte de um contínuo na dinâmica evolutiva deste planeta e, por isso, o estudo comparativo da cognição animal pode dar-nos apontadores para verificar ou validar essas diferenças que, de certo, possuímos. A linguagem, ou o elaborado órgão da linguagem que se situa no nosso cérebro e que nos permitiu «inventar» esta extraordinária capacidade comunicativa, parece ser um deles. Mas talvez não hajam assim tantos mais.

Quanto à nossa mente humana reconheço que dificilmente se poderá separar - de forma incólume - da herança histórica do corpo humano. Por um lado porque talvez ela seja apenas a consequência da nossa interacção com o mundo ou, talvez, porque se encontra irremediavelmente unida à forma como esse mesmo corpo funciona. Mas a (eventual) «função mental», a plasticidade conceptual que nos define, as características essenciais que nos fazem sentir únicos, poderão ser replicadas noutros meios, em maior ou menor grau, com maior ou menor eficiência ou estranheza (e este oceano de possibilidades alimentará a ficção científica durante décadas antes de se tornar obsoleto ou normal).

maio 23, 2007

Fronteira, uma vez mais...

É fácil encontrar diferenças porque tudo é diferente. Promoveram-se, por exemplo, guerras religiosas na distinção subtil de dois quaisquer conceitos sagrados e que, agora e ao longe, são nada. O que já não é fácil é assimilar uma diferença essencial, que delimite uma fronteira argumentável entre X e não-X, entre dentro e fora, entre nós e eles. Seja porque a essência de algo é ininteligível, um conceito escorregadio que escapa ao arbitrário das classificações humanas; seja porque não somos imparciais, estamos sempre a observar de um ponto de vista que raramente se coaduna com outras perspectivas. O Dr. Spleen reconhece (e aceita) esse contaminar da análise pela trajectória e pelo contexto que nos constrói. É inútil acreditar que a separação que consideramos nossa seja um reflexo fiel da realidade, que a ética que usamos seja a construção rigorosa da Justiça ideal. Por isso, assumindo essa sua limitação, sabe que é inútil transferir-se, olhar lá fora pelos olhos dos outros. A ilusão que sobra é a mudança, ou nossa ou desse estrangeiro que nos vizinha e a que se chama mundo. E qualquer que ela seja, vê-se a si mesmo heterogénea, numa ridícula tentativa de tornar distinta essa mistura irremediável que somos todos.

maio 21, 2007

Esforço

[«] A meu ver, a questão, ou distinção, mente-cérebro não é um pseudo-problema. Defendo que é limitativo monopolizar o conceito de saber pensar ao ser humano. Se partíssemos desse pressuposto então, provavelmente, não existiria questão. Parece evidente que o corpo que «encerra» a mente (seja por ser indissociável fisicamente ou por sê-lo culturalmente) é estruturante na forma como se processa o pensar. Tanto pelos tipos de sentidos que possuímos - que nos filtram a informação possível sobre o exterior - como pela capacidade cognitiva potencial do nosso sistema nervoso central. Por exemplo, um cão e um Homo Neanderthalensis terão forçosamente de pensar de forma diferente. Mas quais os pontos de contacto? Será mesmo impossível comunicar com um leão, por exemplo? Com primatas são relatadas experiências no uso da linguagem de surdos-mudos de uma sofisticação desarmante. A comunicação inter-espécies existe e continuamos a não saber quão longe podem estar as planícies genéticas/culturais para que uma comunicação elaborada ocorra. Mas isto não é de admirar: o nosso esforço neste sentido não tem sido muito.

maio 17, 2007

Nada

Como é possível não querer ler? Passar pela vida e, podendo, escrever nada?

maio 14, 2007

Argumentação

A persistência e a estupidez são, por vezes, indistinguíveis nos efeitos que provocam. O manter de uma posição apesar das diferenças entre o antes e o agora, o acreditar numa razão que se torna obsoleta, mesmo que lentamente, é o corolário dessa falta de vontade ou capacidade para mudar, de adaptar e reconhecer a validade terminada de um plano já sem sentido. Poder-se-ia discutir os contrários do raciocínio e da fé, do cepticismo e da crença, dos cinzentos que cobrem a distância entre tais contrastes. Uma coisa que o Dr. Spleen aprendeu na sua interacção com os anos é que dificilmente uma vítima está disposta a discutir estes assuntos e admitir a eventualidade do seu engano, dando, assim, a reconhecer validade aos actos do carrasco. Quando se é imune a argumentos e à forma como se enlaçam, quando não se permite que estes se exponham e conquistem terreno previamente ocupado por preconceitos ou até pelo simples desejo de sobrevivência, quando essa persistência ou estupidez se confundem com a intensidade do momento, tudo o resto é inútil. Não se lhe depara uma conversa, uma tentativa, apenas a conclusão lógica de um assunto já encerrado.

maio 11, 2007

Distinção

Uma questão fulcral na odisseia da cognição é entender as diferenças entre o conceito físico que a sustenta - o cérebro - e a parte «virtual» onde se insere - a mente. Esta distinção, sem ser devidamente explorada, pode levar-nos às estradas mais ou menos estéreis típicas do aprofundar de um equivoco. Não tenho sequer a certeza que haja apenas duas respostas possíveis à pergunta «é possível pensar sem um cérebro?» porque essencialmente associamos ao acto de «pensar» demasiadas características humanas. A pergunta poderá estar contaminada por uma associação antropocêntrica que nos impeça uma resposta verdadeiramente útil e não apenas uma confirmação deste nosso, duvidoso, estatuto especial. Porém, ao reformular a pergunta num seu equivalente (para a maioria das pessoas, pelo menos) «é possível pensar sem um cérebro de Homo Sapiens?», tenho a forte convicção que a resposta é negativa. Mas que implicações estariam contidas num «sim» ou num «não» à primeira pergunta?

[este é o primeiro de um conjunto de textos sobre cognição publicados por mim no WebQualia, aqui revistos e adaptados]

maio 09, 2007

Desenho

Qualquer definir de fronteira é arbitrário. Por isso, cada vez que criamos uma é preciso questionar a bondade ou a justeza dessa nova linha desenhada. E desconfiar, principalmente, daqueles que nela se revêem.

maio 04, 2007

Transferência

No programa diário de uma pessoa normal não se transpiram grandes pensares. Os eventos repetem-se, são ligados em dominós de causa-efeito por conexões fortalecidas dia-a-dia até ao ponto da pessoa que os percorre ser substituído por uma mecânica de gestos, diálogos e reacções apenas iteradas. Assim, a navegar pela cidade à hora de ponta encontram-se mares robotizados de carne e massa cinzenta desactivada. Este negar é a expressão abstracta de uma morte temporária, um coma que se aprofunda nos anos, que se torna maleável no repetir e progressivo estender do que é normal (porque a experiência é um alimento e um ópio, ela substitui-se à demora angustiante desta nossa fome na procura de respostas). O Dr. Spleen atravessa a rua com Dabila e os irmãos Kong, nos seus flancos, olhando eles em redor como a protegerem-no de um eventual ataque motorizado. Sente o suor e a tensão nas suas mãos, mãos que procuram trajectórias discretas mas sempre perto das respectivas armas. Nesta tensão, nesta ânsia fatal do instante seguinte, na busca constante da diferença, Spleen sente que são eles as únicas pessoas na vastidão limitada daquela praça.