outubro 29, 2007

Ilusionismo

A matilha pisa a relva molhada da última chuva, são trajectórias perdidas de significado, vontades sem o conforto conhecido dos objectivos instantâneos. O Dr. Spleen, sentado no banco do jardim à meia-noite de uma lua nova, adivinha o rugir das folhas no vento forte que os rodeia. Aquelas folhas são como as ideias conflituosas, pulsares de electricidade do cérebro humano. Alimentadas, vergadas por preconceitos que as dirigem e focam, é pelo conjunto que fazem na árvore que são julgadas (e note-se a transformação de uma metáfora noutra, coisa que eu - e quando digo eu... -, como narrador, não o deveria realçar se não fossem estas imagens a melhor e a possível tradução da tempestade que dá pelo nome do nosso anfitrião). A mente, assim, longe da rigidez ou da invariante que se designa por medo do vazio, é uma arena para sistemas de crenças, estruturas relacionais de desejos, um mundo de relações em rede. E este desagregar, interpretado de longe, abstraído dos detalhes neuroquímicos de uma realidade indiferente, é visto por alguns como o eu, a personalidade, o espírito, até (vejam lá a parvoíce) a alma imortal. Um outro exemplo de como tudo é decomponível, sejam conceitos, memórias, máscaras. Ou um corpo.

outubro 24, 2007

Colapso

Há aqueles que, num dado momento, seja pela fortuna ou pelo mérito que os elevou socialmente, perdem um pouco do que, a todos, nos faz pessoas. São os que se vestem, comem, trabalham e falam sem nunca sair dessa máscara social que tanto consideram. Desde juízes, médicos, advogados, catedráticos, deputados, engenheiros, (ex-)ministros, bispos e muitos outros (a sociedade também se estima pelos diferentes tipos de sucesso que sustenta) deixaram de ouvir a metade da humanidade que avaliam como abaixo deles. A vida, a rede social que nos liga, passou a ser a imagem destorcida dessa hierarquia que habitam. Ouvem os que estão acima e falam para os que estão abaixo. O que era (e é) uma via aberta de dois sentidos transforma-se numa complicada burocracia de direcções únicas. Ao destruir esta maioria de laços com a sociedade, perdem o contacto do real fora deles e distanciam-se, lentamente, para um mundo mais pequeno, uma ilha onde exercem a actividade que tanto prezam, satisfazem a ambição que os motiva, concretizam o objectivo que os sufoca. Um arquipélago envernizado na pretensão de excelência, cercado (como todas as ilhas) de um Oceano de banalidade que ignoram, desprezam ou, não raras vezes, temem.

outubro 22, 2007

Epsilon [Conclusão]

[«] A execução de uma mente num computador precisaria de ser uma cópia exacta do processo biológico original? Argumentámos que, devido ao processo de tradução - porque o substrato físico onde se processa a ópera mental é distinto - essa exactidão simbólica/sub-simbólica é impossível. Teremos de falar de aproximação, de simulação (e aqui ocorre a imagem da caixa opaca referida posts atrás). Seria necessário parametrizar o algoritmo mental com valores que se aproximassem do necessário (para satisfazer o código moral da cultura em questão) de modo a que o epsilon de diferença entre o «eu de agora» e o «eu simulado» caísse dentro da tal invariante que a sociedade - e nós próprios - convencionamos ser o «eu». Por exemplo, se o processo cognitivo da simulação (sem receio da palavra) fosse mais próximo de mim, do que eu era quando tinha vinte anos, não seria isso suficiente para afirmar que eu também habitaria o ciberespaço, a partir desse momento uma matriz social preenchida por pessoas digitalizadas (ou, simplesmente, pessoas)?

outubro 17, 2007

O objectivo da vida é dispersar energia

Texto de Scott Sampson [adaptado de http://www.edge.org/q2006/q06_3.html#sampson]

Muitos de nós estamos familiarizados com a 2ª lei de Termodinâmica, a tendência da energia para se dispersar, passando de um estado de maior para um de menor qualidade. Em termos mais gerais, como disse o ecologista Eric Schneider, «a natureza abomina o gradiente», onde gradiente significa apenas uma diferença (de temperatura, de pressão, por exemplo) ao longo de uma distância. Sistemas físicos abertos - onde se incluem a atmosfera, a hidroesfera ou a geoesfera - seguem todos esta lei, sendo levados a dispersar energia, em particular o fluxo de calor, tentando sempre atingir o equilíbrio. Fenómenos como o movimento de placas, os fluxos submarinos ou os furacões são manifestações da 2ª lei.

Há cada vez mais evidência que a vida, a bioesfera, não é diferente. É comum ouvir que a complexidade da vida contraria a 2ª lei (invocando uma divindade ou algum processo natural desconhecido). No entanto, a evolução e a dinâmica dos ecossistemas obedecem à 2ª lei funcionando em grande parte para dissipar energia. Eles não o fazem ardendo rápido e desaparecendo, como um fogo numa floresta, mas através de um fogo lento, de ciclos metabólicos estáveis que guardam energia e continuamente reduzem o gradiente solar (principalmente pela fotossíntese, pelas acção das bactérias e das algas).

Virtualmente todos os organismos, humanos incluídos, são transmutações da luz solar, passagens temporárias desse fluxo energético. A dinâmica ecológica, do ponto de vista termodinâmico, é um processo que maximiza a captura e degradação de energia. De igual forma, a tendência para a vida se tornar mais complexa nos últimos 3500 milhões de anos (bem como o aumento da biomassa e da diversidade dos organismos) não é simplesmente derivada da selecção natural, como muitos evolucionistas argumentam, mas também do «esforço» da natureza de absorver cada vez mais luz solar.

A ecologia tem sido resumida à frase «a energia flui, a matéria recicla-se». Porém, esta máxima aplica-se também aos sistemas complexos no mundo não-vivo; unindo literalmente a biosfera à geoesfera. Cada vez mais se percebe que os sistemas complexos, cíclicos, de matéria tem uma tendência natural para emergir face a gradientes de energia. Este fenómeno recorrente pode ter sido uma das forças motrizes para o inicial surgir da vida.

[...] O conceito da vida como um fluxo energético, uma vez totalmente digerido, é profundo. Como Darwin uniu o Homo Sapiens aos restantes animais, a perspectiva termodinâmica conecta inexoravelmente a vida ao mundo não-vivo. Se assim for, a evolução não é dirigida pelas maquinações de genes egoístas com o intuíto de se propagarem pelos milénios. O que pode ocorrer é a ecologia e a evolução operarem em conjunto como uma forma eficiente e muito persistente de reduzir o gradiente gerado pela estrela mais próxima. A minha opinião é que a teoria da evolução (o processo, não o facto da evolução!) e a biologia no geral, estão a dirigir-se para uma revolução uma vez entendida a noção que os sistemas complexos da terra e da vida não estão só inter-conectados mas também são inter-dependentes nesse constante reciclar de matéria para manter o fluxo de energia.

outubro 16, 2007

outubro 11, 2007

Semelhanças

[«] Será o corpo estratégico para definir a mente (humana)? O corpo como um todo não pode ser. Se perder um braço, uma perna, se me derem um coração ou um fígado artificial, continuo a existir enquanto pessoa, apenas alterado pela experiência da perda (mas isso ocorre, em maior ou menor grau, com qualquer experiência). Não pode ser também um sentido em particular. Os cegos, os surdos, os mudos são pessoas inteiras apesar da sua limitação sensorial. Um ser humano privado de qualquer contacto com o exterior (mesmo Hellen Keller possuía o tacto) dificilmente se poderá tornar uma pessoa pela incapacidade de aprender e sociabilizar, mas isso não diz respeito a um sentido humano em particular. Alguém hipotético cujo único sentido fosse um sonar ou um sensor térmico poderia, em princípio, comunicar e desenvolver-se. Assim, o que fica do corpo, do nosso corpo humano? O cérebro. Por isso arrisco reformular a pergunta em duas versões: (a) Será o cérebro humano estratégico para definir a mente humana? (b) Será o cérebro estratégico para definir uma qualquer mente? À pergunta (a) digo que sim quase por definição (lendo estratégico como necessário). À pergunta (b) digo que não por não parecer razoável sermos a única espécie capaz de possuir uma mente (um especismo que nos apresenta uma hipótese de trabalho demasiado restritiva). Uma implicação disto é que, num computador, não poderia ser executada a dinâmica de uma mente humana. Mas poderia ser executada uma outra mente que se lhe pareça - e voltamos à questão da aproximação.

outubro 08, 2007

Fronteira

A arte é o que fica entre uma leitura do mundo e a sua estupefacção. A arte também é o jogo do talento e do esforço, do horror de quem se olha ao espelho e vê o banal. É luta, um suor provocado, o pouco que permanece dessa espuma que é o passado. E, provavelmente, a arte não é nada disto. O Dr. Spleen, na metade sua que se reconhece artista, está habituado a estas contradições (na verdade, o Dr. Spleen, pela força do tédio decorrido dos dias quentes de Verão onde, por decisão pessoal, se encontra encerrado na rotina dos seus vícios caseiros, mais do que um hábito, é um motivo de satisfação quando se lhe depara uma inconsistência, um paradoxo, um, mesmo que pequeno, reflexo de infinito) e vê nelas a possibilidade de caminhos até aí escondidos e por percorrer. Não tanto (ou ainda) como o explorador que, a cada travessia, já só se revê nos mesmos passos repetidos, procurando nas caras novas apenas os vizinhos que deixou, mas sim como o cirurgião que, conhecendo a totalidade do comum ao corpo humano, se excitasse ao dissecar o resto putrefacto de uma qualquer mutação inédita.

outubro 04, 2007

Retirada Estratégica

É inútil argumentar com os que já passaram a fase de ouvir argumentos. O melhor que se pode fazer numa situação dessas é, não podendo evitá-la, manter a calma e limitar-se a não perder a discussão.

outubro 02, 2007

X is-a Y

[«] Suponha-se um início de trânsito. Travo e paro o carro por ter outros à minha frente a bloquear o percurso. Mas o condutor atrás de mim faz sinais de luzes e gesticula a reclamar da minha acção (descartemos outras possíveis interpretações). Devo supô-lo estúpido? Ou agir com mais cautela e dizer, porque nunca o vi na vida, que agiu estupidamente naquele instante? Quando adjectivamos alguém, ou algo, qual a segurança na afirmação que fazemos? Dizer que X é Y é dizer que X age sempre como um Y? Ou que, dada uma mais ou menos longa lista de observações, se X efectuou (quase) sempre actos que se encaixam em Y, então afirmamos ser X um Y? Seja Y a estupidez. É isto dizer que um sábio (admitindo a sageza o oposto da estupidez) nunca comete actos estúpidos? Pelo menos nos adjectivos que ligamos às pessoas (estupidez, honestidade, obsessão, emotividade...) a catalogação deriva sempre da experiência acumulada sobre os comportamentos do sujeito e não sobre o maior ou menor entendimento da forma como o sujeito funciona internamente, cognitivamente. O nosso passado partilhado consiste, nesta perspectiva, num relatório de acções e reacções contextualizadas que nos cataloga nessa gigantesca lista de traços neutros, vícios e virtudes à qual nos encaixamos para definir, aos outros, «o que somos». Só que não somos 100% Y nem 100% não-Y. Temos dias. E temos uma personalidade, um «eu» resistente a mudanças - um cocktail homeostático de emoções e argumentos, arriscando uma metáfora cibernética - que age em correlação ao ideal Y com que se filtra o olhar. Poderá esta narrativa ajudar(-nos) quando X for uma computação e Y o ser-se consciente?