julho 31, 2003

Férias...

Já na gestão das expectativas, espero pela viagem à Turquia.



O Bósforo, príncipio e fim de dois continentes

"O que é pior: a ignorância ou a indiferença? Não sei nem quero saber!"

É normalmente aceite que a falta de exercício físico afecta negativamente o corpo. Alguém activo fisicamente tem mais possibilidades de chegar a uma velhice saudável. Já nem todos aceitam (ou sequer pensaram no assunto) é que a falta de exercício mental afecta a própria mente. Alguém inactivo mentalmente vai perdendo capacidades, da mesma forma que alguém que se mantém parado, as perde também. Ao fim de uns anos, a eventual corrida é mais lenta, custa mais a respirar. Também ao fim de uns anos, o eventual raciocínio é menos preciso, a concentração diminui.

Sentar-se, por sistema, no sofá a ver TV (a sintonia é irrelevante, está a dar televisão em todos os canais) parece ser o zénite das duas desactividades reunidas: não nos mexemos nem pensamos! Isolados na camada protectora das almofadas e dos raios catódicos, assinamos lentamente a nossa certidão de incapacidade. Se esta situação é dissiminada nas pessoas mais velhas (e até compreensível - dado a maior parte do nosso triste século XX), mais perturbante é o impacto nos jovens. Esta falta de vontade intelectual resulta, pelo menos, em três níveis de incapacidade:

1º) A ignorância da Matemática - aqui não me refiro somente aos problemas típicos de resolver equações nas salas de aulas, mas sim à incapacidade lógica, à falta de noção numérica, à dificuldade de abstracção que muitos têm. Consequências? A falta do conhecimento lógico permite que estejamos muito mais susceptíveis a falácias, a raciocínios distorcidos causas de problemas sociais graves. Um exemplo de um mau raciocínio: se "B é verdade" e "se A implica B", então "A é verdade". Trocando A por "a raça/grupo X é prejudicial à sociedade" e B por "alguns indivíduos da raça/grupo X causam problemas", temos um vislumbre destes problemas. A ignorância numérica (a inumeracia) resulta, nos jornais, nos milhões trocados por milhares, na total incapacidade de comparar valores, de os relativizar com percentagens, a inutilidade de certas estatísticas e das suas interpretações. A falta de abstracção revela-se na aprendizagem de conceitos novos, numa confrangedora inépcia para generalizar, de induzir correctamente (um dos motores da Ciência e da sobrevivência).

2º) A ignorância do Português (da linguagem propriamente dita) - a nossa língua é o meio privilegiado para comunicarmos como sociedade. É através dela que entendemos conceitos complexos e estabelecemos uma vivência social que doutra forma seria impossível. Aprender a língua nativa, mesmo que seja um acto instintivo, é uma actividade que permite recolher múltiplos reflexos de toda uma cultura, com a sua riqueza histórica, com a sua diversidade natural, produto de milhões de pessoas. É possível que esta aprendizagem seja também relevante na definição da nossa mente, que estrutura a forma de pensar, de interpretar o que ouvimos, lemos e sentimos. Alguém com dificuldade de expressão, mesmo com uma boa faculdade de raciocínio tem a capacidade de argumentação limitada (um exemplo disso, é quando se tenta discutir numa língua aprendida já na fase adulta). É mais difícil exprimir o que se pensa. Mas ainda é pior: essa incapacidade também se estende à interpretação: não se entende o que se a lê. E isso deforma a educação num ciclo vicioso terrível. Se não formos capazes de interpretar, como se pode aprender? E se não formos capazes de aprender, como melhorar a interpretação do mundo que nos rodeia?

3º) A ignorância da Filosofia – não estou a falar especificamente de Platão, Tomás de Aquino, ou Kant. Refiro-me à incapacidade de pensar no seu profundo sentido. A Filosofia refere-se ao acto de estruturar um pensamento, de planear um argumento, de organizar várias linhas de raciocínio, de construir um texto, um parágrafo, uma linha (não me serve saber escrever se não tiver nada para dizer). A Filosofia também se encontra nos conceitos da Ética (a Justiça, o sentido de respeito, o respeito à verdade, até do humor, a "irredutível expressão da ética", como Daniel Pennac reparou) e do livre arbítrio (da liberdade e da enorme responsabilidade que daí advém). Quando perdemos a capacidade de pensar por nós mesmos, de tomar decisões adultas honestas, desgastamos aquilo que lentamente nos separou dos animais e que a Civilização tanto lutou para construir.

Estamos perante uma tragédia em câmara-lenta, as mais difíceis de lutar porque pensamos que há sempre tempo para as resolver num outro dia... Quem sabe ou quem quer saber?

julho 29, 2003

Inícios...

O início é sempre uma boa altura - nem que seja para corromper o que se pretende.

Terminei - há uns dias - um livro sobre linguagem. Chama-se The Language Instinct e fala sobre a capacidade inata de qualquer criança aprender, com uma eficiência impressionante, a linguagem dos pais. Para além de questões mais técnicas, o livro foca um ponto relevante - o ser humano (felizmente) não nasce como um quadro em branco onde se pode escrever o que se quiser através da educação. O código genético determina um conjunto de potencialidades que a educação e o ambiente (reprimindo ou expressando) acabam por moldar. A linguagem é uma dessas capacidades.

Um exemplo curioso: o livro relata que nas situações em que um conjunto de pessoas é deslocado geograficamente para um local estranho no meio de outras pessas estranhas (a construção dos caminhos-de-ferro americanos no Século XIX, por exemplo) acaba por nascer um linguajar (a que os linguistas chamam "pidgin") que serve como uma ferramenta de comunicação simplificada. Porém, esse "pidgin" não é uma linguagem, não possui uma gramática estruturada, não permite discursos ou argumentos complexos. No entanto, quando nasce a 2ª geração, as crianças não só aprendem o "pidgin" como o elaboram, criando, entre elas, uma verdadeira linguagem baseada no vocábulo envolvente. Uma linguagem gramaticalmente tão rica como as linguagens estabelecidas (o vocabulário é outra história) e que normalmente chamamos crioulo. Um exemplo simples e poderoso de alguns dos mecanismos inerentes ao nosso cérebro.