maio 31, 2010

Ecos e sombras

Cada um de nós é uma colecção de fragmentos. Carinhosamente agregados, cada alteração consentida uma derrota, cada conceito aprendido uma concessão ao que éramos antes, um átomo de mudança e morte. Nunca poderemos apreender o mundo neste arqueológico cérebro de mamífero. Haverá sempre distâncias entre o todo e o que se ganha, que se vê, ouve, que se sente em cada pensamento descoberto. Vivemos num oceano de simplificações, alimentando-nos de equívocos, de mensagens mal entendidas, de partilhas e negociações parciais. E pela sobrevivência, pelo arcaico impulso de manter uma comunidade multi-celular que nos permite a existência, aceitamos a imposição dos outros, a normalização dos nossos apetites e desejos, a troca da acção pela espera, da satisfação pelo plano, o sacrifício do agora pelo depois (e nesse sacrifício inevitável, tudo, ou seja nada, se mostra sagrado). O Dr. Spleen admite que, porém, é nessas restrições que cada um de nós existe. O irrestrito dilui, o universo sem invariantes seria apenas uma maré uniforme de vazio. Nesses limites, nessas regras impostas, no exercício subtil da coerção, a ciência, a arte, o nosso possível e a insanidade que o acompanha. Por isso, quando Spleen exercita o seu talento e sacia a sua sede ao dissecar uma pessoa, sabe que apenas retira à linha do mundo uma aliança fragilmente conseguida, um aproximar ao aproximar dos outros, uma possibilidade contingente cujo eco rapidamente se desfaz. Já e apenas uma sombra.

maio 28, 2010

Tratamento Preferencial

O Jesus dos Evangelhos mostra-nos um importante filósofo moral. O que somos de bom para os nossos filhos, irmãos e pais, a forma como amamos essas pessoas e que, muitas vezes, estendemos aos amigos e vizinhos, deve ser estendido à humanidade. Somos todos uma única família, todos irmãos e irmãs. Para além disso, porque do passado há erros, cicatrizes, sementes de rancor, devemos usar o perdão para limpar e manter essa irmandade o mais protegida possível. Uma família universal mantida e acarinhada com amor e perdão é uma forte e profunda mensagem moral. Mas os Evangelhos não são só isto. Para além de uma colectânea de episódios mágicos e de momentos simbólicos vários, muitos dos quais, senão todos, adaptados de crenças mais antigas, são também uma outra mensagem, contraditória com a mensagem moral referida e, creio, causa de muita dor: a ideia do Paraíso (uma promessa falsa e impossível de cumprir) ser apenas para os pobres de espírito, os despojados e os mansos, um monopólio da sua crença e da lei que propõe. Aqui há uma fenda, uma separação entre os que acreditam num arbitrário X e os que acreditam num outro Y, uma promessa e ameaça de perdição eterna. Não é assim que se tratam os membros de uma família.

maio 25, 2010

Produto Completo

O génio da publicidade é vender a solução e o problema - George Orwell

maio 20, 2010

Sãos e normais

Seja a sanidade o funcionamento psicossomático correcto (saudável, consistente) do corpo e, em especial, do cérebro e da mente. Seja a normalidade a adaptação à respectiva cultura, i.e., uma integração social adequada. Uma cultura -- o resultado de uma complexa negociação sobre uma visão simplificada do real -- impõe limites, normas e proibições ao possível do corpo. A aceitação ou não desses limites define a fronteira entre o normal e a neurose. O grau de liberdade numa cultura estabelece apenas onde se desenha essa fronteira, o quão diferente podemos ser uns em relação aos outros, mas não é capaz de eliminá-la porque há sempre compromissos a fazer quando se vive em comunidade (talvez aí a atracção do paraíso). Como só numa cultura faz sentido falar de pessoas, o animal humano nela criado vê-se, assim, sobre uma pressão inevitável que impede a sua sanidade completa, irrestrita, mas que é essencial à coesão da própria cultura. O 'objectivo' de uma cultura é formar pessoas normais (e manter, gerir, a sua medida de normalidade), não é criar animais sãos. Esta última, para ser estável e douradora, é a tarefa do formigueiro.

maio 17, 2010

Refocar

Philosophers for centuries have wasted their time, and that of others, on such questions as "are their other minds?" or "is there an external world?" I think the question "what is moral (right, good, etc.)" is much the same. Peirce, I think, was right to poke fund at Hume and Descartes. Dewey was right as well when he wrote philosophy will recover itself when it ceases to deal with the problems of philosophers, and seeks instead a method to resolve the problems of men. That morality cannot be established in the same sense that other things may be established (i.e., the temperature at which water boils) should be a non-issue. That it is a human construct is obvious (what else could it be?) and insignificant. We make value judgments all the time; some are better, and more reasonable, than others. Perhaps we should focus on how to make the best possible value judgments, rather than wondering what is "really" valuable. - ciceronianus


maio 16, 2010

Vaticano, 1999

Giuseppe Maria Crespi
L'Immaculée Conception avec les saints Anselme et Martin (1738)

Intitulée "Témoigner de Dieu le Père: la réponse chrétienne à l'athéisme", l'audience du 14 avril 1999 a abordé la question de la nature intrinsèque des athées en évitant le douloureux problème théologique qu'est leur existence. Plutôt que de s'interroger sur l'absurdité des raisons auxquelles "Dieu" se seraient abandonné pour provoquer ou admettre l'existence des athées, le vieux pontife s'est évertué à les décrire comme des individus anormaux, insensés, n'ayant rien compris à la nature humaine.

En guise de première cible, la laïcité est naturellement un danger pour l'institution catholique: "Le sécularisme, en particulier, se révèle dangereux en raison de son indifférence à l'égard des questions ultimes et de la foi". Mais on savourera la désillusion de Wojtyla: "L'athéisme «pratique» est ainsi une réalité concrète amère", qui se poursuit par le constat de son étendue: "S'il est vrai qu'il se manifeste surtout dans les civilisations les plus économiquement et techniquement avancées, ses effets s'étendent également aux situations et aux cultures qui commencent actuellement un processus de développement".

Les athées sont qualifiés de "sots" en se référant à la Bible qui affuble aussi leurs actions des épithètes suivants: "Corrompues, abominables leurs actions; non, plus d'honnête homme" (Ps 14, 1). Mais un saut sémantique est opéré qui transforme les athées en idolâtres puisque ceux-ci ne reconnaissent pas "la vraie nature de la réalité créée" pour la "rendre absolue"; on voit mal pourtant en quoi cela relève de l'idolâtrie. Niant l'autonomie de l'homme, de la nature et de la science, JP2 présente l'athéisme comme une idéologie intolérante. A l'argument que la religion ne serait qu'une béquille de la pensée, il oppose avec véhémence que l'Église "refuse avec fermeté l'interprétation de la religiosité comme projection de la psychée humaine ou comme résultat des conditions sociologiques". Pour ensuite peiner à masquer le désespoir qui frappe les mystiques devant les conquêtes du rationalisme: "l'expérience religieuse authentique n'est pas une expression d'infantilisme." Une bonne connaissance des tares dont elle est accusée est une indication encourageante sur l'évolution future de l'Église.

Enfin, sur les causes de l'apparition de l'athéisme, le pape en rend les croyants coupables, seule pitance à sa disposition vu que les athées n'ont que faire de ses imprécations et menaces: "Le Concile a reconnu que, dans la genèse de l'athéisme, les croyants ont pu jouer un rôle, n'ayant pas toujours manifesté de façon adéquate le visage de Dieu". L'audience s'achève sur quelques raisons d'espérer, pour l'Église, que tout ne va pas si mal et que l'athéisme peut être combattu au moyen de son arme principale: le rationalisme! Le pape cède ainsi finalement à la récupération, qui est tant de mode, de tout et son contraire pour sauver une institution en perdition: répondre à l'athéisme "exige également une présentation correcte des motifs d'ordre rationnel qui conduisent à la reconnaissance de Dieu." La "science qui mène à Dieu" n'est qu'une impasse éculée et on ne saurait trop conseiller l'Église de s'y fourvoyer plus avant afin de la vider rapidement de sa substance...

Un dernier mot est adressé à ses "frères et sœurs" où il lâche ce que la fausse courtoisie de sa charge avait jusque-là retenu: "La Bible nous aide à comprendre que ceux qui veulent nier Dieu sont insensés et se laissent attirer par de vaines idoles." [http://www.atheisme.org/pape-atheisme.html]

maio 14, 2010

Obrigação

Não é uma definição ideológica mas um facto natural que cada pessoa é única, distinta de todas as outras. Mas uma comunidade justa tem de ser mais que a cega aplicação da selecção natural: é-lhe exigida a possibilidade de realizares essa diferença que te define.

maio 11, 2010

Respect

maio 10, 2010

Realidade

[..] a mammal remains a mammal whether or not there are men around to verify that fact. It is trivially true that without humans around nobody would conceptualize what a mammal is, or that the term “mammal” is linguistically arbitrary, but that’s not what Nietzsche is saying. “Mammals” are in fact an objective truth about the world, specifically they are a particular phylogenetic lineage of organisms on planet earth, with a given history and a number of non-arbitrarily distinctive features (despite the existence of Platypi).

[... ] Truth is something “out there,” and the only sensible discussion is about the epistemic limitations of human beings, which make it so that we can rarely be certain of the truths we think we discover. We don’t create truth, we discover it (partially, under certain conditions, using some methods, of which science is certainly a primary one). [...] Science’s object, unlike religion, is not to help us figure a way out of nihilism — that’s the job of philosophy! Massimo Pigliucci post do blog Rationally Speaking

maio 06, 2010

Tradução

A memória é um tradutor de experiências em metonímias.

maio 03, 2010

Excesso

"A maldição de pensar demasiado é o preço da inteligência" - Frank Herbert

Considero que a tradição filosófica é o nosso maior repositório de sabedoria. Mas por vezes acho desesperante algumas discussões onde o ciclo de refutações e contra-refutações se estende ad infinitum para cada detalhe mínimo. Não digo isto pelo processo dialético (uma ferramenta essencial à razão) mas por falta de contacto com a realidade. Exemplos típicos são os temas do livre-arbítrio ou do dualismo. Outro exemplo encontra-se na ética. A designada Guilhotina de Hume refuta a implicação que o que fazemos dá-nos uma razão para definir o que deveríamos fazer. Esta refutação é ainda hoje considerada sólida e parece impedir o uso da evidência e até da razão para responder em definitivo à questão "Porque devo fazer X?" sem recorrer a axiomas ou dogmas. Aqui encontra-se o ponto deste post. Se não podemos responder a esta pergunta de outra forma, então que se definem regras. Regras para enfrentar problemas reais mesmo que não resolvam algumas situações hipotéticas de duvidosa probabilidade. E para as definir, seria irracional não usar o nosso conhecimento, estudar a experiência histórica e, sim, observar as consequências do que fazemos. E entre a neurologia e a psicologia, a sociologia e a antropologia, a política e a história, temos todas as possibilidades de construir argumentos e evidências fortes que justifiquem o que muitas pessoas tentam já fazer: maximizar a felicidade da sua família e da comunidade a que pertencem, reduzir a violência e a discriminação, aceitar cada pessoa como igual e livre de se expressar, de se associar, de aprender e empreender. Se for preciso ser dogmático e afirmar que este tipo de atitude é melhor que o relativismo moral que evita comparar comportamentos e culturas, que assim seja. E, como na ciência, estejamos prontos a admitir os erros e os preconceitos que os formaram, e adaptemos, melhoremos essas regras progressivamente. Nada é perfeito, todos os axiomas são contingentes, porque seria diferente o exercício da ética? Se é impossível obter uma justificação fundamental, meta-ética, metafísica, meta-qualquer coisa, que assim seja também. Que respondamos então: "queremos fazer assim, porque foi este o caminho que, a custo, aprendemos a trilhar".

maio 01, 2010

Notre-Dame