Ecos e sombras
Cada um de nós é uma colecção de fragmentos. Carinhosamente agregados, cada alteração consentida uma derrota, cada conceito aprendido uma concessão ao que éramos antes, um átomo de mudança e morte. Nunca poderemos apreender o mundo neste arqueológico cérebro de mamífero. Haverá sempre distâncias entre o todo e o que se ganha, que se vê, ouve, que se sente em cada pensamento descoberto. Vivemos num oceano de simplificações, alimentando-nos de equívocos, de mensagens mal entendidas, de partilhas e negociações parciais. E pela sobrevivência, pelo arcaico impulso de manter uma comunidade multi-celular que nos permite a existência, aceitamos a imposição dos outros, a normalização dos nossos apetites e desejos, a troca da acção pela espera, da satisfação pelo plano, o sacrifício do agora pelo depois (e nesse sacrifício inevitável, tudo, ou seja nada, se mostra sagrado). O Dr. Spleen admite que, porém, é nessas restrições que cada um de nós existe. O irrestrito dilui, o universo sem invariantes seria apenas uma maré uniforme de vazio. Nesses limites, nessas regras impostas, no exercício subtil da coerção, a ciência, a arte, o nosso possível e a insanidade que o acompanha. Por isso, quando Spleen exercita o seu talento e sacia a sua sede ao dissecar uma pessoa, sabe que apenas retira à linha do mundo uma aliança fragilmente conseguida, um aproximar ao aproximar dos outros, uma possibilidade contingente cujo eco rapidamente se desfaz. Já e apenas uma sombra.
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