abril 28, 2006

Um Equilibrio Flutuante (parte IV)

Este mecanismo de equilíbrio também é relevante nas discussões da responsabilidade em geral. À medida que aprendemos mais sobre determinado sistema, encontramos argumentos para passar certos indivíduos para o outro lado da fronteira (de responsável para inocente ou, mais raramente, vice-versa). É esta ideia que cria a aparência que a fronteira está constantemente a recuar; mas é necessário observar melhor este fenómeno. É possível que façamos revisões estruturais nas nossas políticas de quem prender ou de quem tratar (a homossexualidade já não é motivo de prisão e é cada vez menos vista como doença) sem alterar, por exemplo, as nossas convicções de fundo. Por outro lado, não mudamos os nossos conceitos de culpado e inocente se descobrimos um inocente encarcerado; colocamo-lo em liberdade mas não mudamos o critério que usámos antes. É precisamente por não mudarmos o critério que o reconhecemos como inocente. Do mesmo modo, pela força da evidência, podemos inocentar uma categoria de indivíduos sem qualquer mudança ou erosão no nosso conceito de responsabilidade moral. Com isto, poder-se-ia supor que existe menos responsabilidade na sociedade do que suposto inicialmente. [cont.]

abril 26, 2006

Pontos de Vista


Uma das delícias de Hiëronymus Bosch

abril 24, 2006

Engodo

Outro corpo no gelado do chão. Outro assassino morto com a sua própria arma. Não é a tentativa falhada que irrita o Doutor Spleen: tentar é parte da natureza do Homem e falhar é o acto inevitável que conduz à criação das coisas. Não é igualmente a simplicidade dessa tentativa que produz a irritação: não deixa de ser admirável o possível que se abre no optimismo de um modelo elementar e que, no entanto, nos leva longe mesmo que esse longe seja a distância dos nossos pequenos passos. Nem sequer é a vontade de insistir no erro, nesse tentar logrado que nos rouba os anos a pavimentar o caminho: a paisagem que desenhamos do mundo não é um vento que se atravessa mas antes uma cidade que é preciso, com dor e chegada a hora, demolir. O que verdadeiramente irrita o Doutor Spleen é essa arqueologia do engano, esse desenterrar de ideias mortas que leva outros a revisitar o arquivo de erros que é a História.

abril 20, 2006

Um Equilibrio Flutuante (parte III)

Por exemplo, o que é necessário para um criminoso ser 100% culpado? Ninguém é perfeito e, aliás, ser-se 100% culpado de alguma coisa é um conceito potencialmente contraditório. Como separar entre os que sofrem de patologias irrefreáveis (ele não sabia, ele não consegue controlar-se) e aqueles que fazem acções criminosas no seu 'perfeito juízo'? Se colocarmos o limiar demasiado alto, todos escapam do castigo; se demasiado baixo, corremos o risco de criar bodes expiatórios. Num contexto geral, como desenhar uma linha de fronteira e como evitar que ela recue sobre as pressões da ciência? Imaginemos um teste de aptidão que meça a flexibilidade mental, o conhecimento geral, a compreensão social e o controlo dos impulsos que são, discutivelmente, os requerimentos mínimos para um agente moral. Este teste quantifica o ideal implícito à nossa tácita compreensão de responsabilidade. Esta política é clara, conhecida e parece funcionar bem em aplicações simples, como o teste de condução: é preciso ter 18 anos (ou 16 ou 21...) e ser admitido numa prova de aptidão. A partir daí obtém-se a liberdade de guiar nas estradas e têm-se uma responsabilidade igual a qualquer condutor. Este processo pode ser ajustado com o tempo quando aprendemos mais sobre segurança rodoviária: restrições à alcoolémia, períodos de aprendizagem, excepções para certas deficiências e outras circunstâncias que melhoram o custo-benefício de maximizar a segurança dos cidadãos e a liberdade dos condutores. [cont.]

abril 18, 2006

Construção

Nascemos homo sapiens sapiens. A vida é um esforço (ou devia ser) para que cada um possa morrer já pessoa.

abril 17, 2006

Incompletude

Mesmo que os detalhes sejam tão opacos como uma parede de betão armado, é bem sabido que a Física determina, com fabulosa aproximação, a trajectória de milhares de corpos celestes nessa dança cósmica que se chama Sistema Solar. É também de conhecimento relativamente público que a teoria quântica estabelece, com enorme rigor, as normas e comportamentos das partículas sub-atómicas. O que talvez não seja tão conhecido é a incapacidade total da mesma Física em criar modelos que determinem se o lançar de uma moeda, como aquela que agora se encontra no ar em via ascendente, cairá na cara ou na coroa da mesma. Dabila nunca conseguiu perceber (nem decorar) qual das faces é a cara de uma moeda de euro, obrigando-o a adivinhar o desfecho de uma aposta pela expressão do parceiro de jogo. O problema presente é que o semblante granítico do Doutor Spleen não lhe permite antever qual dos métodos (o garrote ou a bala na nuca) terá de aplicar à vítima sobre o silêncio esperado que sempre se segue a estas tomadas de decisão.

abril 13, 2006

Um Equilibrio Flutuante (parte II)

À medida que aprendemos mais e mais sobre como decidem as pessoas, as asserções subjacentes às nossas instituições de honra e culpa, de castigo e tratamento, de educação e saúde, terão de se ajustar aos factos já que instituições e práticas baseadas em falsidades óbvias são demasiado fracas para se confiar (poucas pessoas estarão dispostas em comprometer os seus futuros num mito frágil onde elas próprias são capazes de encontrar as falhas). As nossas atitudes nestes assuntos têm gradualmente mudado ao longo dos séculos: hoje desculpabilizamos e menosprezamos casos que os nossos antepassados teriam lidado de forma muito mais dura. Estamos a progredir ou a tornar-nos moles? Para os receosos, isto soa a erosão social; para os confiantes é um sinal de um entendimento crescente. Porém, existe uma perspectiva mais neutral deste processo. Para um evolucionista assemelha-se a um equilíbrio flutuante, nunca quieto por muito tempo, um resultado relativamente estável de uma série de inovações e contra-inovações, ajustamentos e meta-ajustamentos, uma corrida às armas que gera, pelo menos, um tipo de progresso: um auto-conhecimento, uma sofisticação crescente sobre quem e o que somos, sobre o que podemos e não podemos fazer. E sobre este auto-conhecimento modelamos e remodelamos as nossas conclusões sobre o que devemos fazer.[cont.]

abril 11, 2006

Comparações

A Lei criminal está para a vingança como o casamento para o impulso sexual (já não sei quem o disse mas não discordo).

abril 10, 2006

Percursos

O real é complexo. Esta afirmação teria a concordância de todos os presentes na sala incluindo o policia corrupto que, para além das dívidas ao jogo, do sustento da intrincada rede de amantes homossexuais e do terror absoluto ao olhar do Doutor Spleen, não costuma pensar muito nestas coisas. Aliás, o real é tão complexo que, por muito trabalho que nele se ponha, serão sempre as perguntas o resultado natural de uma investigação sistemática. Por um lado, esta imensidão do mistério é um convite ao religioso que, sem cuidado, reduz-se ao regresso infantil da necessidade de um Pai/Mãe. Por outro, o não findar das perguntas garante um oceano de oportunidades para cientistas, filósofos e até artistas do divinatório (que entre os padrões do real lá cosem relações improváveis ao saciar dessa sede que são as pessoas). O polícia, não sendo pensador metódico nem astrólogo e que agora sai no silêncio culpado dos traidores, sabe que as oportunidades estarão sempre à nossa frente desde que saibamos que olhos não usar.

abril 07, 2006

Um Equilibrio Flutuante (parte I)

[adaptado do Freedom Evolves de Daniel Dennet, Penguin Books, 2003]

Não existe maior fonte de ansiedade em relação ao livre arbítrio que a imagem da Ciência a absorver todos os nossos actos, bons ou maus, na sopa ácida da explicação causal, retirando-os progressivamente da alma até que nada reste para louvar ou culpar, para honrar, respeitar ou amar. Ou assim parece para muitos. E desta forma eles tentam levantar barreiras, doutrinas absolutistas desenhadas para afastar a ameaça destas ideias. Esta, porém, é uma estratégia condenada, uma relíquia do milénio passado. Graças ao progressivo entendimento da natureza, aprendemos que essas barreiras apenas atrasam a catástrofe e, muitas vezes, até a pioram. Se vivemos numa praia, é bom estar preparado para mudar quando a praia se deslocar, algo que as praias fazem devagar mas seguramente. Os quebra-mares podem 'salvar' a costa mas destroem algumas das características que faziam essa mesma costa um lugar tão agradável para se viver. Uma melhor solução passaria por estudar a situação e chegar a um acordo sobre quão perto do mar pode uma casa ser construída. Mas os tempos mudam, as políticas mudam, e aquilo que fazia sentido durante décadas ou séculos pode se tornar obsoleto e ter de ser revisto. É comum dizer-se que devemos trabalhar com a natureza não contra. Isto, porém, é retórica de moderação; todo o artefacto humano altera alguma propriedade da natureza. O truque é entender o suficiente dos padrões naturais de forma a interferir com eles para conseguirmos os resultados pretendidos. [cont.]

abril 04, 2006

As duas cidades

Na busca de um uniforme que nos limite, as histórias antigas vestiram de castigo o episódio de Babel. Para desmotivar o Homem a construir um acesso aos céus, Deus multiplicou as línguas impedindo a comunicação entre as pessoas e bloqueando, assim, a ambição humana. Mas bloquear é atrasar apenas. O dito castigo, ocorrido nessa cidade dos homens chamada Babilónia, foi uma benção de diversidade, um abrir de visões do mundo que ajudou, muito tempo depois, a abrir portas que talvez nunca sequer fossem imaginadas se vivêssemos numa qualquer cidade de Deus.

abril 03, 2006

Redução

Uma foto não é só um retrato de um instante perdido. Não é somente um possível, uma visão de um lugar cumprido. É também um constatar de duas distâncias, uma temporal que nunca se recupera e uma de espaço entre o olhar e o conjunto que se retrata. O Doutor Spleen permite-se ao prazer autêntico das boas fotografias. Por vezes, meras reproduções de astronomia (que mesmo as falsas cores ou o contraste exagerado não alteram em nada a diferença entre a imagem e a verdadeira dimensão do real), por vezes paisagens moralmente neutras de mar ou terra, por vezes ângulos e partes de corpos estruturados nessa ajuda da iluminação profissional. Nestes últimos, o Doutor Spleen sabe que a separação entre a pessoa que se expõe e o expositor que nele existe é transponível sob o custo de um limitado esforço. Algumas vezes a atravessou para tocar esse mesmo corpo tornando-o, no processo, objecto de outros gostos. Algumas vezes mas poucas. Porque uma distância sempre reduzida deixa de ser distância.