abril 30, 2009

Acordar

Leio muito sobre a Segunda Guerra. Livros gerais, biografias, romances, diários, muito sobre a chaga humana do Holocausto. Mesmo agora, das últimos três livros comprados, dois são sobre o assunto. Este teimar no tema vem de onde? Talvez seja apenas o meu gosto pela história em geral (também leio sobre o Império Romano, sobre as Cruzadas...), ou o meu esforço individual para combater o esquecimento que vai caindo sobre a última geração que ainda viveu aquela terrível época. Talvez seja o desejo infantil de querer, pela força da leitura, que cinquenta milhões de pessoas possam ainda viver a plenitude das suas vidas arrancadas, que se torne só um terrível sonho que finalmente acaba.

abril 27, 2009

Segundo R.M.Hare um acto ético deve parecer justo aos envolvidos na acção, devendo eu sugeri-lo quer ganhe ou perca com a sua execução. Porém, uma decisão ética pode ser demasiado complexa para calcular, no tempo disponível, qual a melhor opção a tomar. Por isso a utilidade da existência de regras éticas aplicáveis a uma maioria de situações normais que - não sendo verdades absolutas - demonstraram-se guias úteis e geralmente eficazes. Mas para as situações extraordinárias precisamos de tempo, reflexão e, muitas vezes, da total capacidade da nossa consciência colectiva e intelecto. Tentar forçar uma regra para lá do seu domínio ou período de aplicação é fonte de muitas tragédias quer pessoais quer históricas. [1]

abril 24, 2009

Problema

A interacção entre sociedade e as pessoas produz uma cultura cujos feitos e efeitos ninguém é capaz de compreender totalmente. Os frutos desta cultura, seja a sua tecnologia, a sua arte e literatura ou a complexidade das suas instituições há muito que ultrapassaram a capacidade individual dos seus cidadãos. Isto significa que as decisões tomadas pelos respectivos líderes são, na melhor das hipóteses, fragmentadas e incompletas. Como reduzir os problemas e as crises inerentes, como evitar a distância entre o que desejamos e o que fazemos?

abril 22, 2009

Composição

Há uma analogia próxima entre programar, escrever e compor. São actividades combinatórias que usam um número limitado de conceitos e vocabulários para produzir um ilimitado de possibilidades. No caso da escrita produz-se textos, expõe-se argumentos; na música são compostas canções, sonatas, sinfonias; na programação escreve-se programas, resolve-se problemas. Qualquer uma precisa de prática, seja de ler livros, ouvir obras, interpretar código, seja de escrever histórias, músicas ou algoritmos. Em todas existem os elementos técnicos a aprender e reproduzir pelo aluno, em todas a arte de criar e romper fronteiras do mestre.

abril 21, 2009

Dogma

[...] 26Enquanto comiam, Jesus tomou o pão e, depois de pronunciar a bênção, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: «Tomai, comei: Isto é o meu corpo.» 27Em seguida, tomou um cálice, deu graças e entregou-lho, dizendo: «Bebei dele todos. 28Porque este é o meu sangue, sangue da Aliança, que vai ser derramado por muitos, para perdão dos pecados. [Mateus 26-28]
O milagre da transubstanciação, durante a Eucaristia, transforma o pão e o vinho na carne e no sangue de Cristo. Para além da dúbia vantagem na conversão de canibais e vampiros com poderes de abstracção, esta crença medieval causa, hoje, perplexidade à maioria das pessoas e poucos católicos a interpretam como literal (mas deveriam fazê-lo, segundo a ortodoxia). No entanto, no passado, ela tinha algum sentido porque se assumia que os objectos, como Aristóteles argumentara, possuíam propriedades secundárias (como a cor, o sabor ou a textura) mais uma substância primária que definia, essa sim, o objecto. Desta forma, durante a Eucaristia, o pão e o vinho manteriam as suas propriedades secundárias mudando apenas, de forma imperceptível aos sentidos, as suas substâncias passando a ser o corpo de Cristo. A Revolução Científica trouxe uma mudança da nossa perspectiva do Mundo, e a ontologia de Aristóteles tornou-se obsoleta com as descobertas e os argumentos dos últimos 400 anos. Mas a ortodoxia não muda (ou muda pouco). A transubstanciação é um desses ecos que persiste do passado, cada vez mais distorcido pela habitual e progressiva distância que os dogmas tendem a acumular com a realidade. [1]

abril 17, 2009

Teoria e Prática

"Não podemos contentar-nos com uma ética que não se adeque às vicissitudes da vida quotidiana. Se alguém propõe uma ética tão nobre que tentar viver à sua luz constitua um desastre para todos, então - independente de quem a propôs - não é uma ética nobre de todo, é uma ética estúpida que deve ser firmememente recusada. A ética é prática, senão não é verdadeiramente ética. Se não for boa na prática, também não é boa na teoria. Se nos livrarmos da ideia que uma vida ética tem de consistir na absoluta obediência a um qualquer reduzido e simples conjunto de regras morais será mais fácil evitar a armadilha de uma ética que não funciona. Uma compreensão da ética que nos permita levar em linha de conta as circunstâncias especiais em que nos encontramos é já um importante passo em frente para uma ética que poderemos realmente usar para orientar as nossas vidas." Peter Singer, Como havemos de viver?

abril 16, 2009

Ler sempre Vergílio Ferreira

"Como exprimir em duas linhas o que venho tentando explicar já não sei em quantos livros? A vida é um valor desconcertante pelo contraste entre o prodígio que é e a sua nula significação. Toda a «filosofia da vida» tem de aspirar à mútua integração destes contrários. Com uma transcendência divina, a integração era fácil. Mas mais difícil do que o absurdo em que nos movemos seria justamente essa transcendência. Há várias formas de resolver tal absurdo, sendo a mais fácil precisamente a mais estúpida, que é a de ignorá-lo.

Mas se é a vida que ao fim e ao cabo resolve todos os problemas insolúveis - às vezes ou normalmente, pelo seu abandono - nós podemos dar uma ajuda. Ora uma ajuda eficaz é enfrentá-lo e debatê-lo até o gastar… Porque tudo se gasta: a música mais bela ou a dor mais profunda. Que pode ficar-nos para já de um desgaste que promovemos e ainda não operamos? Não vejo que possa ser outra coisa além da aceitação, não em plenitude - que a não há ainda - mas em resignação. Filosofia da velhice, dir-se-á. Com a diferença, porém, de que a velhice quer repouso e nós ainda nos movemos bastante." Vergílio Ferreira, Um Escritor Apresenta-se [via Notas aos Café]

abril 15, 2009

Via Robotica

Não há nada de mais relevante a uma sociedade que dar condições às suas crianças para crescerem com espírito crítico e suficiente cultura e aproveitar, aqui e agora, o igual dos seus direitos e o único das suas capacidades. Como defendido por von Humbolt e Stuart Mill, são necessárias duas coisas: liberdade (de acção, de expressão) e variedade de oportunidades. Só assim se sustém o vigor intelectual e a originalidade da respectiva sociedade. Se não motivarmos o espírito crítico fabricaremos ovelhas mesmo que as haja de diversas cores e tamanhos. Se, ainda por cima, não estimularmos a variedade obtemos um rebanho padronizado em brancos e pretos.

abril 13, 2009

Consequências

Como subordinar à razão os desejos animais que nos mexem por dentro? Esse esforço é (diria Kant, suponho) o que nos faz ser agentes morais, gestores do próprio eu entre o saciar da sede - que apenas precede uma seguinte - e o custo nos outros de a vencer - este sim último porque quase sempre irreversível. Há, no entanto e pelo menos, outro caminho difícil e exigente: perder os desejos na cedência possível do passado biológico e passar a ser um instrumento da razão, temperado no mínimo de emoções inevitáveis (o medo, talvez e só) e filtrado nesse teatro de ecos que são as memórias. O Dr. Spleen, ao optar por este trilho, há muito que perdeu o contacto íntimo com a Humanidade em geral e com Kabila em particular, limitando-se a observar, neutro, como este improvisa, após o encravar da arma e do punhal esquecido em casa, para investir contra os três adolescentes, agora muito mais atentos, depois de insultarem abstractamente a sua vetusta mãezinha.

abril 09, 2009

Do real à metáfora

"Existem trabalhos muito interessantes que argumentam sobre o impacto do desenvolvimento político não só sobre os métodos de fazer ciência, mas igualmente nas crenças científicas. [...] Não há qualquer dúvida, por exemplo, de existir simbolismo político associado à cosmologia, e que a interpretação correcta desse simbolismo ser frequentemente argumentado pelo discurso político. O arranjo ptolemático dos objectos celestes colocava o Sol, o símbolo comum da realeza, junto aos outros planetas, sugerindo que o Rei e a nobreza (representada pelos planetas) partilhavam a autoridade política, com muito do poder real a ser mediado pelos nobres. O sistema de Copérnico, porém, dispunha-se mais facilmente a suportar monarquias absolutistas. Há medida que os monarcas caminhavam em direcção ao poder absoluto, a cosmologia copernicana mostrava-se progressivamente mais útil. É preciso não supor que aos absolutistas apenas interessava apresentar o novo sistema, de forma casual, como uma imagem da nova ordem: era virtualmente essencial para eles demonstrar um apoio natural que suportasse as suas afirmações políticas. Apenas desta forma poderiam eles satisfazer a expectativa geral de, como criação de Deus, a ordem do cosmos reflectia, de forma relativamente óbvia, a ordem da sociedade. Para nós, este tipo de conversa parece não mais que uma metáfora, mas no período inicial da modernidade era uma expectativa real baseada na crença das correspondências (a ideia que partes diferentes da criação divina correspondiam a outras partes, revelando, assim, o plano de Deus). Os novos arranjos políticos tinham de ser justificados em termos dos arranjos naturais, de outra forma pareceriam artificiais e disfuncionais. Isto não significa que Copérnico e os seus seguidores desenvolveram deliberadamente a nova astronomia para promover as suas crenças políticas. A progressiva aceitação do heliocentrismo, porém, pode talvez ser vista como uma indicação da mudança fundamental do que era visto como a ordem natural das coisas." pg.103-5, John Henry, The Scientific Revolution and the Origins of Modern Science

abril 07, 2009

Reviver o Passado em Braindead

Podes fazer o zapping que quiseres, está a dar televisão em todos os canais.

abril 06, 2009

Muralha

Como aceitar a liberdade e, daí, o único que há em nós, e não ser esmagado pelo oceano de diferenças e responsabilidades, lá fora, entre o vazio e os outros?

abril 01, 2009

Vantagens competitivas

O efeito placebo está estudado e bem documentado e, hoje, há suficiente evidência científica para crermos na sua existência. Isto significa que, numa época pré-médica, houve vantagem selectiva entre um crente nas enfabulações de um qualquer xamã em comparação com alguém menos sugestionável. Desta forma, ao longo de milhares de gerações, a pressão terá sido para aumentar a percentagem de crédulos nas populações humanas. Somos todos originários de linhagens com maiorias de crentes. As religiões do presente são apenas instâncias barrocas - porque antigas e prenhas de compromissos históricos e políticos ocorridos durante séculos de expansões e aglutinações - dessa vantagem em acreditar.