fevereiro 26, 2007

Jurisprudências

A magia é a ponte que liga o deserto da superstição, a névoa da religião e o oceano da ciência. É o admitir de uma rede de causas e efeitos, o reconhecer de uma hierarquia de poderes de influência aos quais é necessário saber os humores, os quereres e pulsões, os vícios e fobias. E neste jogo de simpatias e antipatias, de reflexos simbólicos, de imagens e originais que se transmutam, age-se sobre a natureza, sobre as leis que a regem e subjugam. Nesse sentido tudo é tecnologia, tudo é acto de querer compreender para mudar, de convergir o caos e a ordem ao vento dos nossos desejos. O Dr. Spleen admite, porém, que a eficácia é um argumento forte. De que serve deitar sal na mesa para repelir o azar, de repetir a ladainha de uma qualquer loa a um qualquer ente supremo, se nada de eficiente daí resulta? Como preferir o poder incerto de um mau olhado à garantia comercial de uma arma? Como optar pelo amuleto linguístico de uma reza ao diabo quando se possui uma gestão que contrata homens, mortais e idiotas, é certo, mas reais e obedientes? No entanto, Spleen reconhece que a leveza de alma que o leva a segurar certos objectos (o seu bisturi, aquela tesoura) em ocasiões que a lógica e a retórica não poderiam justificar, são do domínio por escavar e ainda animal dos nossos sentidos.

fevereiro 23, 2007

Gravação

Cada instante, cada palavra dita, cada gesto feito são ecos, talvez espelhos, do contexto que os engloba. Por cada que se grava - na memória, numa fita, nessa página antes branca - guarda-se algo mais desse tudo que vemos, dia a dia, passar.

fevereiro 22, 2007

Mensageiro

No riso uma semente de esquecimento. O humor é um ácido universal na sua capacidade de dissolver até a ideologia mais regimentada. Nas suas faces, da ironia, da farsa, da sátira, um universo de alternativas que eclipsam o original que as motivou. O Dr. Spleen não tem qualquer preferência por maltratar palhaços apesar do terror que aquelas máscaras, na sua frontalidade disponível, lhe marcaram a infância. Os dois que agora e aqui se encontram estão deitados num início de sangue, obrigados a esfregar, no chão, as tintas coloridas das suas caras. Enquanto Dabila e Kong júnior se atarefam com seriedade protocolar no concluir da sua missão, Kong sénior ri-se no suposto ridículo que observa. Como se o humor que pretende emanar um profissional do humor não lhe pertencesse, como se a máscara que não esconde fosse apenas o catalizador do contexto que, num acaso ou intenção, os empurra ou esmaga.

fevereiro 16, 2007

Delegação

Se considerarmos que a violência é uma limitação imposta (i.e., não de comum acordo) às liberdades do outro, é a violência sempre reprovável? Conceder o direito à violência é algo que parece uma contradição. Como conceder um direito que é, na sua essência, uma violação de direitos? Nem sequer existe o direito à auto-defesa, o que há é uma argumentação (a protecção da própria integridade) que justifica, eventualmente, o uso dessa violência. A ser um direito, cada individuo procuraria exercer essa violência no seu próprio interesse, e nessa parcialidade resultaria a acção do mais forte, a arbitrariedade de quem a pode executar em maior grau. Este raciocínio justifica que o «contrato social» entregue o monopólio da violência ao Estado. É o Estado que, legalmente, age sobre cada individuo, é ele que define regulamentos de coerção defendidos por instituições que se pretendem imparciais (de onde se depreende a importância da independência no julgamento e na acção), distantes de emotividades subjectivas (espelhados em regulamentos de conduta e ética normalmente mais rígidos que as leis comuns) e o menos arbitrárias possível (onde a preferência da rigidez contra a inovação protege-as de jurisprudências contraditórias). Entre estas instituições encontramos o Exército, as Polícias, a Justiça. A forma encontrada pela nossa sociedade para domesticar esse potencial de violência passou, assim, por entidades abstractas, colectivas, que exercem a violência justificando-se em argumentações lógicas ou factuais e suportadas em leis previamente conhecidas. É nestas condições, no geral, que consideramos aceitável o uso da violência e é deste modo que é exercida, em maior ou menor grau mas por consenso, sobre todos nós.

Nada disto, em princípio, exige democracia. Desde que as instituições sejam de facto independentes, imparciais e não arbitrárias, uma sociedade pode controlar a sua violência potencial e, assim, ser estável. Mas, deixadas sem controle, sem uma fiscalização e vigilância externas, sem a possibilidade de substituição cíclica, o abstracto destas instituições torna-se numa rede de interesses pessoais que, após se cristalizar, tende a perder as características que a justificam e, também, tende a extender o conceito de violência para abarcar, no seu monopólio, outras situações não justificáveis (como o proliferar de crimes sem vítimas, o erodir da liberdade de expressão, o impor de uma única matriz de crenças aceitável). Também isto pode ocorrer em democracia mas torna-se impossível uma cristalização permanente (excepto, talvez, nesta instância de Justiça).

fevereiro 15, 2007

Vida

fevereiro 14, 2007

Invariantes

[Segue um resumo desta página: www.snopes.com/quotes/goering.htm]

Sweating in his cell in the evening, Goering was defensive and deflated and not very happy over the turn the trial was taking. He said that he had no control over the actions or the defense of the others, and that he had never been anti-Semitic himself, had not believed these atrocities, and that several Jews had offered to testify in his behalf. If [Hans] Frank [Governor-General of occupied Poland] had known about atrocities in 1943, he should have come to him and he would have tried to do something about it. He might not have had enough power to change things in 1943, but if somebody had come to him in 1941 or 1942 he could have forced a showdown. (I still did not have the desire at this point to tell him what [SS General Otto] Ohlendorf had said to this: that Goering had been written off as an effective "moderating" influence, because of his drug addiction and corruption.) I pointed out that with his "temperamental utterances," such as preferring the killing of 200 Jews to the destruction of property, he had hardly set himself up as champion of minority rights. Goering protested that too much weight was being put on these temperamental utterances. Furthermore, he made it clear that he was not defending or glorifying Hitler.
Later in the conversation, Gilbert recorded Goering's observations that the common people can always be manipulated into supporting and fighting wars by their political leaders:
We got around to the subject of war again and I said that, contrary to his attitude, I did not think that the common people are very thankful for leaders who bring them war and destruction.

"Why, of course, the people don't want war," Goering shrugged. "Why would some poor slob on a farm want to risk his life in a war when the best that he can get out of it is to come back to his farm in one piece. Naturally, the common people don't want war; neither in Russia nor in England nor in America, nor for that matter in Germany. That is understood. But, after all, it is the leaders of the country who determine the policy and it is always a simple matter to drag the people along, whether it is a democracy or a fascist dictatorship or a Parliament or a Communist dictatorship."

"There is one difference," I pointed out. "In a democracy the people have some say in the matter through their elected representatives, and in the United States only Congress can declare wars."

"Oh, that is all well and good, but, voice or no voice, the people can always be brought to the bidding of the leaders. That is easy. All you have to do is tell them they are being attacked and denounce the pacifists for lack of patriotism and exposing the country to danger. It works the same way in any country."

fevereiro 12, 2007

Diluir

Não deve haver animal social que não mude consoante o número que o rodeia. Um cão sozinho é muito diferente que numa matilha. Uma pessoa também. Na multidão somos parte da mistura, o individual ponderado dilui-se no colectivo que raramente considera. Num líquido não se distinguem partes, tudo é um pouco de gota e lágrima.

fevereiro 09, 2007

Duas medidas

Os preconceitos são, pelo menos, de dois tipos: os que construímos e os que nos são dados. Os nossos derivam da experiência pessoal e, em geral quando não contaminados por outros preconceitos, possuem correlação positiva com a realidade. Sem eles não poderiamos viver num mundo repleto de eventos perigosos mesmo que filtrados pela capa protectora e uniformizante da sociedade. Os outros preconceitos, porém, não lhes controlamos o desenvolvimento. São derivados por um processo histórico e social tortuoso, velam por interesses que os originaram e que, hoje em dia, podem já nem fazer sentido. Estes preconceitos, também pelo seu percurso comunitário e geracional, tendem a generalizar mais do que faríamos sozinhos, e nessa generalização - que rasga como inútil a experiência pessoal dos seus seguidores - existe contida uma simplificação da realidade, não uma correspondência útil mas um restringir da nossa capacidade de avaliar casos particulares. Isto tem duas consequências igualmente nefastas. Primeiro, cada preconceito deste tipo tem como preço tornar, cada um, um pouco menos pessoa: alguém que cegamente segue um regulamento moral que lhe tolda o espírito crítico paga um preço muito elevado. Segundo, nisto resulta que julgamos pessoas, eventos ou locais por olhos que não os nossos. Agimos com convicções que vão, por vezes, contra o nosso próprio bom senso. Construímos muralhas onde não há guerras, substituímos pontes por fossos, um possível de amizade por uma certeza de desprezo. Além disso, mesmo que fosse um facto que um grupo ou um conjunto era melhor, maior ou mais atraente que outro, nunca poderemos julgar e agir sobre cada pessoa como se fosse a personificação de uma estatística. É um facto inegável que as médias não são instâncias.

fevereiro 07, 2007

Facturas

Há quem acredite que, não podendo ser um bom exemplo, tem a obrigação de ser um terrivel aviso. [1]

fevereiro 05, 2007

Memória


Como legenda desta foto: 16 Abril. Estes trabalhadores escravos da Rússia, Polónia e Holanda internados no campo de concentração de Buchenwald pesavam, em média, 80 Kg, onze meses antes de entrarem no campo. Na altura da foto pesavam cerca de 35 Kg. Muitos morreram de fome mesmo depois das tropas americanas da 80ª divisão terem controlado a área. [Consulte o arquivo destas e de outras fotos até agora classificadas (link via Kontratempos])

fevereiro 02, 2007

Nada é sagrado, nada é de graça

Cada um de nós constrói ou empresta um código ético para poder viver. Devido ao nosso caracter social, é também necessário respeitar uma lei comum, originada historicamente num suposto grande consenso entre os cidadãos obrigados a cumpri-la. Será bom sinal que a nossa ética e a lei da polis sejam aproximadas, caso contrário, podemos, por exemplo, ser considerados sociopatas pelos outros ou a sociedade ser um totalitarismo baseado numa burocracia arbitrária. Excluindo os impulsos e os mecanismos automáticos derivados da experiência que representam a maior parte das acções da nossa vivência, quando tomamos uma decisão reflectida ela é suposta ser de acordo com a ética pessoal e com a lei vigente. Quando violamos a primeira, estamos a por-nos em xeque, a mentir a nós próprios, a «carregar uma má consciência»; quando violamos a segunda, cometemos um crime e ficamos sujeitos à restrição de direitos expressa na lei. Pode acontecer que as duas estejam em conflito e ficarmos, assim, confrontados com uma escolha. Devemos escolher a nossa ética, os nossos valores, ou a lei, os valores da comunidade? Pode ser que a matriz de valores que seguimos esteja errada, ultrapassada pela dinâmica da sociedade, e estarmos presos a preconceitos arcaicos que perderam a relevância ou a utilidade que inicialmente os motivaram. Pode ser que a lei esteja errada, e já não represente nem um consenso nem proteja os direitos e a liberdade dos seus cidadãos. A decisão é pessoal mas a responsabilidade das nossas acções tem consequências. Ou optamos defender o que acreditamos, na rectidão profunda das nossas certezas, e arriscamos o crime e respectivo castigo por injusto que seja. Ou optamos por mudar, por esquecer as crenças que nos guiaram até à encruzilhada, defendendo a vontade comum da sociedade que nos exigiu participação. Mas também aqui arriscamos um crime e castigo futuro, caso tenhamos errado por falta de análise, convicção ou coragem. Nada é sagrado, nada é de graça.

fevereiro 01, 2007

Restos

Um passo em frente no saber é perder, ou relativizar, os preconceitos da nossa cultura que normalmente restringem o pensamento. Sobra o receio de, levando o projecto ao seu objectivo ideal, não sobrar nada em nós para continuar.