janeiro 29, 2007

Equivalências

Um qualquer ente precisa de estabelecer fronteiras, de desenhar (consciente ou não) o mapa a indicar por onde seguir. Mas antes de arrumar o universo em três partes, ou seja, entre o que é bom, o que é mau e o que é neutro, tem de se separar do ruído do mundo, escapar da sopa uniforme a que tendemos, e ganhar forma, interesse ou função. Só então o outro é possível, só então os detalhes do contexto se tornam necessários proibidos ou indiferentes. O Doutor Spleen acha o mesmo da moral. Porém, considera, com alguma tristeza conceptual pelo constatar das suas certezas, que a necessidade de classificar as coisas deveria sempre ser motivo de uma consequência - como na sobrevivência da vida ou de um povo - e não uma causa por si mesmo construída. Uma exigência não é um desejo e, com maior ou menor relutância dos visados, o quente de um corpo vivo que se rasga é, por vezes, igual ao calor da fogueira que se alimenta.

janeiro 26, 2007

Balança

Temos direito a ter direitos. Que por entre a história, a filosofia, a política se encontre da ética o reflexo possível à nossa época. Mas como resolver a tensão entre direitos e liberdade? A liberdade é um direito consequência da limitação do outro. Também temos o dever de ter deveres. Houve um conjunto de direitos que submetemos à organização de um Estado ao longo de um processo histórico nada linear, previsível ou convergente. Este conjunto depende do desenrolar do mundo e de um momento para o outro pode expandir-se até nos vermos escravos de uma nova Roma (viver em democracia e vigiar sempre cada vez soam mais como sinónimos). Mas este conjunto não pode reduzir-se a nada sob pena de perdermos essa metade partilhada, gravada na cultura que nos educa. Eliminar os nossos deveres é eliminar a responsabilidade perante o outro, é perder a liberdade, a metade que nos distingue.

janeiro 22, 2007

Confronto

O Doutor Spleen e o televisor. Entre estes dois titãs um recear projectado. O objecto em si, tão parecido com um abat-jour, é o arauto de uma terraplanagem de ideias capaz de corar uma bomba atómica. Atravessando a uniformidade electromagnética do espaço, na frequência dada de um canal, passa a rota invisível de pequenos circos de ondas transmutadas, por frenéticos feixes de electrões, na sopa de cores e ruído que se designa canal de televisão. Os efeitos, tanto do espectador directo como no contágio posterior destes com as restantes formas de vida, espalham-se insidiosamente pelo que sobra. Ouvem-se risos. Muitos risos a polvilhar emissões de vinte e quatro horas de estupidez reinante, mudando o ambiente para que outros estúpidos melhor se adaptem e assim espalhem os seus dejectos autorais no ecossistema plástico das ideias humanas. Mas todo o mecanismo, segundo Spleen, parece desprovido da estupidez que emite e é nisso, nesse intuir subtil de uma tendência quase invisível, que o receio, raro nele, se expõe.

janeiro 19, 2007

Propriedade

Onde residem esses segredos cujo decifrar nos enche de ânsia? Entre a crua e violenta apatia lá fora e o turbilhão incessante cá dentro há, exposto, um querer atribuir coberto no verniz da linguagem. É este refazer de mundo que chamamos nosso, onde, só então, podemos cavar buracos e neles tapar mistérios.

janeiro 17, 2007

Brisa

Da cordilheira de objectos, crenças e hábitos que acumulas o que segue contigo no caixão? E do resto, o que fica?

janeiro 16, 2007

Transacção

O Dr. Spleen reflecte sobre essa dinâmica da balança a que se designa Estado. Os direitos e deveres negociados entre indivíduos e sociedade não passam de um lado para o outro sem fricção. Este calor produzido e exposto às pessoas, como o do Sol, mostra-se nas mais diferentes frequências e tonalidades. E entre todos os nomes dessa legião habitam sempre aqueles que se mantêm no equivoco da negociação. No fabrico do castelo incompleto a que se designa lei, advogados, juízes e as suas cortes. No seu outro lado, no desafio à fronteira que é o crime, mafiosos, corruptos. Na procura de respostas, sociólogos, economistas, políticos. Mas nem tudo se esgota nesta fricção. Indiferente ao modo como a cegueira dos cidadãos lida e é lidada pela miopia da sociedade, indiferente ao complexo jogo entre liberdades e responsabilidades, numa terra de ninguém, há quem procure apenas, nessa sinfonia de conflitos que nos rodeia, uma melodia, uma imagem, uma ideia ou padrão escondido, um grito.

janeiro 12, 2007

Cultura e Genética (última parte)

A inteligência social é uma característica comum aos primatas. O antropologista Robin Dunbar argumenta que esta é a principal razão pelo aumento da massa cerebral: existe uma forte correlação entre o tamanho do cérebro e a dimensão dos grupos sociais entre cada espécie. A inteligência tecnológica existe também noutros primatas (os chimpanzés usam ferramentas no seu ambiente natural) mesmo que a capacidade de construir ferramentas seja muito rudimentar (mesmo em cativeiro). Os Austrolopitecus usavam ferramentas mas não existem evidências de uma capacidade deliberada de construção. Já o Homo Erectus mostra uma grande evolução, com a manufactura de machados simétricos (indicando que o construtor tinha já uma imagem mental do objecto pretendido). Mas em tudo isto existe um enorme conservadorismo: um crescimento limitado tecnológico aliado a uma falta de capacidade de inovar. Mesmo nos humanos modernos existe evidência que mostra um grau de separação entre a inteligência social e a técnica. Por exemplo, os autistas são deficientes em entender o comportamento de outros humanos mas melhores que a média na compreensão de ferramentas e objectos inanimados.

Finalmente, existe uma óbvia selecção que favorece um melhor conhecimento do ambiente. Mas foi isto obtido através do aumento geral da inteligência ou a partir do desenvolvimento de um módulo mental específico? Em favor desta segunda opção, pode-se argumentar que todas as sociedades humanas partilham certas ideias do mundo natural. Primeiro, todos os seres vivos pertencem a um, e a um só, «tipo natural». Um animal é um cão ou um gato e por aí fora, necessita pertencer a uma espécie (não a zero nem a duas) e não muda de espécie. Segundo, partilhamos a ideia que os tipos naturais podem ser classificados hierarquicamente. Por exemplo, um cão e um leão são 'comedores de carne' (e não 'comedores de folhas'), mamíferos (não são repteis ou peixes) e animais (não são plantas). Estas atitudes humanas generalizadas podem reflectir uma predisposição inata. Em alternativa, elas podem ser universalmente aceites por serem praticamente verdade e seriam aprendidas pelas várias sociedades humanas devido representarem conhecimento importante. Um segundo argumento em favor de um módulo mental específico é a facilidade com que as crianças adquirem estas crenças.

Voltando ao argumento, o aumento do cérebro humano nos últimos cem mil anos foi associado com um aumento das três inteligências: social, técnica e de história natural. Porém, elas eram relativamente independentes. Milthen sugere com o advento da linguagem, incluindo a gramática, evoluiu também neste período. Apesar de ser difícil sugerir uma data mais precisa, a explosão cultural dos últimos 50.000 anos, que levou a um acumular progressivo de conhecimento, pode ter coincidido com o terminar da separação destes três módulos, acção na qual a linguagem terá tido um papel fundamental. Com a linguagem é possível estabelecer e comunicar aos outros analogias entre os três processos mentais (usamos a mesma gramática para falar de conceitos relativos dessas três áreas). Se este argumento estiver certo, devemos à linguagem o ter-nos libertado do conservadorismo que durou um milhão de anos durante o Paleolítico Inferior e colocar-nos no caminho da evolução cultural que se seguiu.

[adaptado do livro The Origins of Life de John Maynard Smith e Eörs Szathmáry]

janeiro 11, 2007

Caminhos

Numa frase o fluxo das palavras forma um enredo de sentidos porque em cada palavra, em cada ligar, uma rede de influências, um conjunto de janelas a iluminar-se mutuamente por onde as frases que a vizinham ajudam a entender. Neste labirinto de ambiguidades quão ingrato o papel de tradutor, quanto desafio no do leitor, que caminho atravessado nesse do escritor.

janeiro 08, 2007

Pós

O desinteresse é o buraco negro que convive no centro dessa galáxia que nos faz. Uma exímia organização molecular, um monumento da Evolução, custeada na morte de triliões de seres até à contradição mais ou menos ilimitada que é o Homo Sapiens. E depois, no seio uma despreocupação, uma falta de foco que lenta nos desbarata. O Dr. Spleen desliga o Wresting num certeiro carregar de botão vermelho e a alcateia observa-o (não muito admirada porque a experiência tem este caracter nivelador: adapta o concreto do mundo de dentro ao aparente do mundo de fora) em silêncio. O único ruído é o ajustar estático do televisor a desligar-se, aproximando-se desse estado informe de objecto inanimado, tão inofensivo como uma pedra logo depois do apedrejamento.

janeiro 05, 2007

Cultura e Genética (parte V)

Porque demorou tanto aos nossos ascendentes iniciar o processo cultural? O registo fóssil mostra a existência de ferramentas limitadas com um milhão e quatrocentos mil anos. O aumento cerebral acelerou nos últimos 300.000 anos, os modernos Homo Sapiens surgiram há 100.000 anos mas só desde há 50.000 anos se verifica uma evolução cultural contínua. O que explica estas diferenças temporais? E quando se originou a linguagem?

O arqueologista britânico Steven Mithen no seu livro A pré-história da mente de 1966 tenta uma resposta. A essência do seu argumento é a seguinte: A mente humana é realmente modular como sugerido por estudos de competência linguística. Durante a maior parte da evolução humana, estes módulos aumentaram de eficiência mas mantiveram-se, em larga medida, separados uns dos outros. A linguagem surgiu inicialmente como função social de comunicação mas providenciou um meio no qual essas barreiras podiam ser derrubadas. A explosão de criatividade dos últimos 50.000 anos resultaram do eliminar dessas barreiras. Mithen supõe a existência de três módulos mentais cujo objectivo seriam lidar com a inteligência social, a inteligência técnica e a história natural (i.e., o conhecimento do ambiente, dos seus perigos e virtudes). [cont.]

janeiro 02, 2007

Correntes

"A ignorância é uma coisa vil, abjecta, indigna, servil, sujeita a inúmeras e violentíssimas paixões. Destes insuportáveis tiranos que são as paixões - e que ora nos governam alternadamente, ora em conjunto - te libertará a sabedoria, a única liberdade autêntica. Para chegar à sabedoria um só caminho e em linha recta; não há que errar; avança em passo firme e constante. Se queres que tudo te esteja sujeito, sujeita-te tu à razão; dirigirás muitos outros, se a ti dirigir a razão. Ela te dirá o que deves empreender, e de que maneira; assim não serás surpreendido pelos acontecimentos. Tu não podes apontar-me alguém que saiba de que modo começou a querer aquilo que quer. E porquê? Porque o comum das pessoas não é levada pela reflexão, mas arrastada por impulsos. A fortuna cai sobre nós não menos vezes que nós caímos sobre ela. A indignidade não está em «irmos», mas em «sermos levados», em perguntarmos, de súbito, surpreendidos no meio da um turbilhão de acontecimentos: "Mas como é que eu vim parar aqui?" Séneca, Cartas a Lucílio