dezembro 21, 2006

Refocagem

A palavra 'eu' é uma abreviatura para o nós que nos habita. 'Eu' é o resultado, a cada instante, da multidão que se congrega, degladia e se constrói numa pessoa e à invariante que sobressai dessa dialéctica chamamos personalidade. Eu (e tu) não somos o ponto final no qual orbitam as coisas, somos, apenas e tanto, a trajectória de um discurso.

dezembro 18, 2006

Babel

Não existiriam pessoas sem comunicação. Poderiam existir seres humanos, como existem bactérias ou algas azuis ou fungos gigantes. Claro, estas e outras decisões bioquímicas relevantes e mui estruturais foram tomadas há mais de mil milhões de anos por indivíduos que não se pareciam nada connosco (uns nossos avós, por assim dizer) mas que não sabiam o que andavam a fazer (também um pouco como os nossos avós). A comunicação permitiu o construir das culturas, a troca de saberes recolhidos, a sua inevitável acumulação. O Dr. Spleen pensa no custo (que sabe, por experiência, ser uma pergunta a colocar sempre) deste projecto comunicacional. Que o mundo é complexo é algo que, por muito óbvio que pareça, nunca é demais repetir. Que a comunicação está restrita à capacidade do canal utilizado já não é tão óbvio mas é igualmente crucial. Porque significa não ser possível transmitir ao outro todas as nuances, os cinzentos, as diferenças que o mundo imprime sobre o nosso entender. Daí a ambiguidade e o desencontro, o equívoco. E do equívoco, a um mero passo, a guerra, o genocídio, a indiferença.

dezembro 15, 2006

Cultura e Genética (parte IV)

Existem, claro, diferenças entre genes e memes. Os genes são transmitidos de pais para filhos. Os memes podem ser transmitidos horizontalmente, ou mesmo dos filhos para pais. Mas existe uma diferença ainda mais profunda sobre estes dois conceitos. Genes especificam estruturas ou comportamentos - i.e., fenótipos - durante o desenvolvimento. Na herança, o fenótipo morre e apenas o genótipo é transmitido. A transmissão dos memes é muito diferente. Um meme é um fenótipo, o análogo ao genótipo seria a estrutura neural no cérebro que especifica esse meme. Quando A conta a anedota a B o que é transmitido é o fenótipo (A não passa uma parte do seu cérebro a B). Daqui segue que a herança nos memes pode conter caracteres adquiridos: B ao receber a anedota pode criar uma variante ainda com mais piada, e transmiti-la a C já com as devidas alterações. Nesse sentido, a transmissão cultural é Lamarckiana. Por estas razões, não é possível usar a teoria da genética populacional aos memes.

Uma outra implicação da linguística é a noção da mente modular (cf. post anterior). Estudos sobre a linguagem e sua aquisição sugerem que a habilidade para falar não é um aspecto relacionado com a inteligência geral, mas sim uma competência específica. Como Noam Chomsky argumenta, nós temos um «orgão da linguagem». A evidência desta perspectiva levou à sugestão que o cérebro possui competências específicas para certos domínios. No jargão actual, diz-se que o cérebro é modular (conceito que tem sido reforçado em estudos neurológicos tanto em pessoas normais como em pacientes que perderam parcelas de massa cinzenta). [cont.]

dezembro 11, 2006

Expressão

Traduzir é adicionar distância. Não se resume ao tradutor essa ponte entre margens de dois livros numa identidade possível. Traduzir é reconhecer no gesto do outro a sua mensagem invisível, é reconhecer nessas palavras o mínimo comum que nos une. E traduzir encerra também a dificuldade entre o que queremos dizer e o que falamos, entre a pulsão não verbalizada da nossa mente e a rede de palavras que nos agarra às coisas. Este motivo, principalmente, faz que o Doutor Spleen fale pouco e prefira relegar a um elaborado sistema de regras e hábitos implícitos, a sequência de ordens que diariamente exige. Não porque lhe custe as perguntas mas dificilmente suporta a longínqua ligação das respostas dadas, reflexos de questões que não existem e nascidas na confusão de quem as formula. Por isso, quando algo distinto do normal é necessário mas não urgente, prefere que lhe adivinhem os motivos, entre tentativas e erros, na linguagem glaciar do seu corpo e no fechar abrupto da tesoura com que vai cortando o mundo.

dezembro 06, 2006

Diminishing Returns

Quando alguém promete acabar com uma dada característica social como o crime, o consumo de drogas, o insucesso escolar, a mortalidade ou o trabalho infantil, o suicídio, a escravatura... está simplesmente a ser demagógico (ou ignorante). Não é possível eliminar por completo qualquer fenómeno não trivial que surja naturalmente na dinâmica de uma sociedade humana. Pode-se procurar soluções para reduzir percentualmente (por exemplo, para metade) estes respectivos fenómenos. Mas quanto maior for a redução desejada, mais esforços e recursos terão de ser alocados, mais responsabilidade terá de ser assumida pelo estado e/ou aos cidadãos, outros problemas não terão atenção. É que há sempre uma fronteira para lá da qual o esforço exigido torna-se contraproducente, desencadeando efeitos secundários mais graves que os problemas que se procuram resolver. Pode parecer pessimista mas existem outras características que, num caso invertido, num totalitarismo, possuem a mesma dinâmica: a vontade de ser livre para escolher e expressar crenças e desejos, de formar comunidades, de ter filhos e amigos, amar.

dezembro 04, 2006

Foco

Não fora o mecanismo de empurrar em espasmos ritmados as bolas de comida digerida para os oito metros de intestino delgado (ritmo esse que Kong júnior imagina existir, porque não lhe parece ser contínua este – e qualquer outro – tipo de passagem) não conseguiria acreditar que a quantidade de bolonhesa ingerida pelo irmão pudesse ser guardada num estômago aproximadamente humano. Entretanto (teria de haver um entretanto, não gastaríamos um texto, mesmo que inútil, num tal árido conjunto de deglutições repetidas apesar de, no parenteses anterior, já se ter dado – e aproveitado – a oportunidade a uma reflexão), entretanto, dizíamos, pára, lá fora, na rua, a silhueta de uma mão no vidro do restaurante. Lê algo. Ou observa. Uma mulher nova parece, o rosto a não fazer justiça àquela mão primeva, envolta num vermelho vivo em vestido destacado no escuro da noite e os três se viram. Só o Doutor Spleen permanece imóvel se exceptuarmos a trajectória de impressora com que os seus olhos massajam as linhas paginadas de um qualquer livro.

dezembro 01, 2006

Cultura e Genética (parte III)

É claro que os seres humanos dependem da aprendizagem observacional, reforçada pelo ensino, que inclui instruções verbais. Se existem animais capazes de copiar os seus pais e avós porque não surgem avanços culturais continuados nas suas sociedades? Duas sociedades de chimpanzés podem ter hábitos distintos mas ambas não estão continuamente a adquirir novos hábitos. Uma resposta provável é que, nos humanos, a principal ferramenta por onde a cultura é transmitida é a linguagem.

Tanto o sistema genético como o sistema linguístico são capazes de transmitir um conjunto indefinido de mensagens construídas como sequências lineares baseadas num pequeno número de unidades diferentes. Na genética, a sequência das quatro bases (ACGT) especifica um grande número de proteínas que, por sua vez, especifica um número indefinido de morfologias. Na linguagem, a sequência de 30 ou 40 fonemas especifica muitíssimas palavras cujo arranjo (segundo uma dada gramática) permite elaborar um indefinido número de significados.

Richard Dawkins acentuou esta analogia ao introduzir o conceito de meme, uma unidade de herança cultural semelhante ao gene. Um meme, argumenta ele, é um replicador. Uma dada anedota, por exemplo, ao passar de A para B, forma uma representação no cérebro de B que pode ser visto como uma replicação da anedota original. Existe espaço para selecção: uma boa anedota replica-se mais facilmente que uma má. Claro que o sucesso da replicação depende da natureza da mente humana bem como do meio cultural onde ela existe. Mas o mesmo pode ser dito sobre os genes: o seu incremento depende do ambiente e do conjunto de outros genes que estão presentes. [cont.]