outubro 31, 2006

Delta

Nunca nos demos bem com distâncias. Fossem elas medidas em quilómetros ou em diferenças diversas no olhar o outro.

outubro 30, 2006

Personas e Pessoas

No planeta Ankh, os seres conscientes possuem uma característica muito especial: apenas se consideram pessoas quando interagem num diálogo com outro Ankhiano. Esta forma de agir tem implicações profundas nas dinâmicas culturais. Um Ankhiano sozinho não existe enquanto agente activo mas apenas se vê (e é visto) como um passivo social em potência. A solidão, a distância à casta é uma sentença de anulação, e a sua possibilidade uma ameaça constante que paira sobre todos. Um Ankhiano sozinho não pensa, não planeia nem aprende, apenas é capaz de reagir somaticamente ao seu ambiente e de executar tarefas repetitivas oriundas de uma qualquer experiência passada. Apesar disso, reconhece diferentes níveis de intimidade, o que implica a existência de uma hierarquia de personalidades partilhadas (entre amigos, amantes, familiares, desconhecidos), ou seja, dois Ankhianos, consoante a categoria onde se inserem mutuamente, estabelecem uma persona, uma máscara que lhes dá a unicidade de uma pessoa naquele instante do espaço-tempo, naquele intervalo onde se preenchem sentidos e se afastam abismos. O facto de três ou mais Ankhianos se poderem juntar, resulta numa complexa estrutura linguística para distinguir as combinações possíveis que daí advêm. Por isso, os Ankhianos a partir de um (pequeno) número de participantes usam um único termo para designar tal rede de comunicação que, aproximando à tradução possível da distância que nos separa, significaria algo como 'ruído', 'diluição' mas também 'desespero'. Um Ankhiano não tem medo de mentir porque, mesmo sabendo instintivamente que a mentira contamina o outro e que tal perda restringirá, mais cedo ou mais tarde, a possibilidade e a qualidade de futuras uniões, o facto de não enfabular quando separado confere ao mentiroso a reconfortante visão de um horizonte desimpedido.

outubro 24, 2006

Opção

Qual a diferença entre omissão e acto? Porque não agir quando se deve é melhor, nesta sociedade, que agir quando não se deve?

outubro 23, 2006

Meios, Fins, Recomeços

O estudo teórico pode garantir alguma conquista ao saber com ésse maiúsculo mas não substitui a experiência acumulada no cruzar dos anos. Por exemplo, o domínio da culinária está no virtuosismo da receita e não num conjunto abstracto de fundamentos teóricos. A receita é um exprimir de interacção, uma sinfonia de empatias empiricamente ganhas sobre uma história de erros e cujas propriedades são mais importantes que o explicar ou um entender da sua existência. Também uma desagregação - como Spleen a chama num dos seus raros eufemismos - não requer conceitos avançados de anatomia, apenas a consciência dessa ordem obedecida de um corpo, dessa dinâmica pulsante a que chamamos vida. Não se aprende bioquímica para fazer uma caldeirada.

outubro 20, 2006

Equilíbrio

Os hábitos podem prevenir a loucura mas em excesso previnem a pessoa.

outubro 18, 2006

Premonição...


...da guerra civil (Salvador Dali)

A maioria das fotos europeias das décadas de 1910 e 1930 partilham, para mim, um peso opressivo. Não é o preto e branco (que talvez ajude) nem o ar tipicamente triste das caras que, imóveis e de frente à câmara, vemos fixadas. É por retratarem os períodos imediatamente anteriores às terríveis guerras que lhes seguiram, a um conjunto antagónico de fetos políticos que cresciam, imperceptíveis, perante as vidas normais dos retratados. Como a lembrar que o presente não nos leva, necessariamente, ao futuro que queremos.

outubro 16, 2006

Procura

Há semelhanças entre algumas possibilidades teóricas e certas impossibilidades práticas. Por exemplo, o Doutor Spleen admite a possibilidade à priori de existir alguém que suporte um nível ilimitado de dor, que mantenha a coerência moral perante qualquer inundar de contexto que acompanha certos momentos. Porém, dadas as restrições da bioquímica, da aprendizagem social e da influência esmagadora das pressões que, como cogumelos, habitam nos interstícios desse queijo suíço que é a cultura, seria, na prática, uma quimera pretender encontrar ou defrontar uma pessoa assim. Já Dabila não se preocupa com a força aplicada nos seus punhos perante uma tão clara instância do exemplo descrito (e que se cristaliza neste prolongar de tempo oferecido ao silêncio das palavras). Nada na sala húmida e relativamente escura se altera, nem quem devia falar nem quem o deveria fazer falar. Do lado do primeiro, Spleen procura, atento, algo que mostre ser esta a confirmação que até agora lhe escapara. No lado do segundo, a indiferença explica-se porque a ignorância sempre passou ao lado de argumentos subtis.

outubro 12, 2006

Balança

Para quem afirma ter a maioria sempre razão, como é que, em 10 milhões, 4999999 podem estar errados mas 5000001 não? Por outro lado, dificilmente dois votos justificam uma guerra civil. Uma patetice que salve vidas não pode ser uma grande patetice.

outubro 10, 2006

Governo de N

Em qualquer sistema burocrático, o transferir de responsabilidades é um assunto de rotina diária e se quisermos definir a burocracia nos termos da ciência política, i.e., como uma forma de governo - o governo dos secretariados em contraste com o governo dos homens, de um homem, de poucos homens ou de muitos homens - a burocracia, infelizmente, é o governo de nenhum homem e, por esta razão, talvez seja a menos humana e a mais cruel forma de governação - Hannah Arendt, Personal Responsibility over Dictatorship

outubro 07, 2006

Proveniência

Fora de nós, o vazio. Fora do silêncio, um ruído infinito. São passos de gente lá fora que impede o sono de chegar. Não. Não são os passos. É um mundo que se força ao Mundo e do qual não se admite fuga e nessa impotência a insónia. Quem seríamos sem os outros? Os actos são respostas à dinâmica que nos envolve e define, os gestos que nos classificam, o rosto nosso construído. O Dr. Spleen jaz uma vez mais no colchão húmido de um meio de dia. É um outro Verão que começa, os ritmos dos corpos que se mostram, um suor que atravessa a multidão no limiar do fétido. No lento das horas imagina o deserto. Um amarelo arenoso sem limites, sem barulho, sem o vento humano das cidades, culturas, civilizações. E no seio desse deserto apenas um corpo, seu, a caminhar sem direcção. Por quanto tempo duraria a satisfação de se saber sozinho? Quão presos estamos aos vícios que os estranhos tão bem alimentam?

outubro 03, 2006

Avanço

Que limites à miopia que tu és escolheste iluminar? A tragédia não é esse multiplicar de escuridão que nos rodeia. A tragédia é não avançar sobre nenhuma.

outubro 02, 2006

Complementar

Nós não somos engraçados ou tristes, agressivos, inteligentes, sádicos, subtis, irónicos, perspicazes, x ou y, não no sentido que nos classifique. O mundo existe, é um arrastar irrefreável de realidade, de milhões de matizes semelhantes que se acumulam rápido até tudo se tornar diferente. É apenas um desejo, uma pequena mas certa soberba achar que o nosso eu não se afecta na dimensão do outro, do que está lá fora ao frio indiferente do que queremos. O Doutor Spleen (como já o afirmamos meses atrás) sabe-se uma soma de metades nem sempre concordantes, sabe que no contexto está impresso uma parte de nós, um parâmetro essencial a essa função de complexidade diabólica a que chamamos personalidade. E acredita, por saber isso, que mesmo que a responsabilidade não se transfira, não se explica um momento sem se saber onde e como se passou, quais os tecidos que prenderam esse presente ao frágil fio de memória que o substituiu. Por isso, entre o torturador e a sua vítima, entre a ânsia velada de ferir e o terror inevitável de sofrer, estão apenas as cordas, o metal das grilhetas que sustêm o cenário, a cadeira presa ao chão nesses dois não tão diferentes pontos de vista.