novembro 29, 2005

Acusação

A lei do século XIX não concedia a Bonaparte a vitória de Waterloo. Preparava-se outra série de factos, em que Napoleão já não tinha lugar. Havia muito que a má vontade dos acontecimentos se tinham declarado.

Era chegado o tempo de cair aquele homem vasto cujo peso excessivo nos destinos humanos perturbava o equilíbrio. Era só um indivíduo preponderado pela sua parte mais do que o grupo universal. Seriam mortais para a civilização, se durassem, estas pletoras da vitalidade humana concentradas toda numa só cabeça, o mundo junto no cérebro de um só homem. Chegara o momento em que a incorruptível equidade suprema reconsiderava. Naturalmente tinham feito ouvir as suas queixas os princípios e elementos, de que dependem as gravitações regulares, tanto na ordem moral como na ordem material. O sangue ainda fumegante, o atulhamento dos cemitérios, as lágrimas das mães, são arrozados terríveis. Quando a terra sofre com a demasia do peso que a sobrecarrega, há gemidos misteriosos na sombra, que são ouvidos no abismo.

Napoleão foi denunciado no infinito, e a sua queda estava decidida. Incomodava Deus. Waterloo não é uma batalha; é a mudança de aspecto do Universo. - Victor Hugo, Os Miseráveis

novembro 28, 2005

E assim as invenções tornam-se descobertas...

As teorias científicas são modelos que relacionam certos factos da Natureza para explicar e eventualmente prever eventos que observamos. Têm de ser refutáveis mesmo que sejam capazes de adaptar-se às novas informações que não existiam no momento da sua concepção. Porém, quando as teorias cessam há pelo menos dois destinos muito distintos: ou são eliminadas (por exemplo, o Sol andar ao redor da Terra, o flogisto ou a teoria do éter) ou são consideradas factos (a Terra ser uma esfera e andar à volta do Sol são hoje factos não teorias). Quando é que uma teoria se torna um facto? Quando todas as instituições de uma cultura a aceitam como tal? Um critério (muito abrangente) seria analisar a opinião das individualidades mais tradicionais, nomeadamente as religiosas, sobre o caso em questão. Se usarmos esse critério, a evolução biológica passou, no Ocidente e neste início de século, de teoria a facto dado o Vaticano aceitar que ela existe (o mesmo não ocorre com a selecção natural, recusada por sectores religiosos em desfavor do desenho inteligente).

novembro 25, 2005

q.b.

Não se comunica com o sobrenatural senão por algoritmos. Sendo o domínio do intangível, sobra-nos a experiência de sucesso e insucesso dos rituais tentados. Isto, um pouco de memória selectiva e um corpo organizado de funcionários convictos é suficiente a uma religião. O resto (morais, exegeses, a sublimação das causas) é acessório.

novembro 22, 2005

Pausa

Turner

novembro 21, 2005

Standard

A definição de um conceito pode ser útil mesmo sem incluir a totalidade dos casos que pretende descrever. Por exemplo, a definição de espécie não inclui todos os casos conhecidos, mas a Biologia estaria pior sem ele. O mesmo se passa em noções como a justiça, a ética, os vícios e virtudes. Uma definição não precisa ser completa. É mais importante que não inclua casos contrários ao conceito que se quer formular e que tenha em conta que haverá sempre excepções positivas. A incompletude e a intolerância são preços diferentes a pagar pela conformidade.

novembro 18, 2005

Diluição

É-nos desconfortável o espaço das opções por tomar. Preferimos o acto que as elimina mesmo sabendo que depois, quando tudo se torna irreversível, não fazemos falta ao que é preciso executar. O impossível da mudança mata a pessoa que nos distingue.

novembro 16, 2005

Boas notícias (we hope)

[Martin Penner, 7 Novembro 2005 no The Australian] The Vatican has issued a stout defence of Charles Darwin, voicing strong criticism of Christian fundamentalists who reject his theory of evolution and interpret the biblical account of creation literally.

Cardinal Paul Poupard, head of the Pontifical Council for Culture, said the Genesis description of how God created the universe and Darwin's theory of evolution were "perfectly compatible" if the Bible were read correctly. His statement was a clear attack on creationist campaigners in the US, who see evolution and the Genesis account as mutually exclusive.

"The fundamentalists want to give a scientific meaning to words that had no scientific aim," he said at a Vatican press conference. He said the real message in Genesis was that "the universe didn't make itself and had a creator". This idea was part of theology, Cardinal Poupard emphasised, while the precise details of how creation and the development of the species came about belonged to a different realm - science. Cardinal Poupard said that it was important for Catholic believers to know how science saw things so as to "understand things better".

His statements were interpreted in Italy as a rejection of the "intelligent design" view, which says the universe is so complex that some higher being must have designed every detail.

novembro 15, 2005

Opções

Quando deparamos com um problema difícil, a receita fácil é uma ilusão poderosa. A verdade também.

novembro 14, 2005

A sobrevivência da política (última parte)

A política, assim, está tão inexoravelmente ligada à nossa natureza, que qualquer transformação do estado afecta a religião, cultura ou a moral. Isto não deixa de ser verdade mesmo quando as alterações são demasiado lentas para repararmos nelas. As mudanças são mascaradas pela piedade moral da sociedade. Thomas Paine, por exemplo, considerava que os direitos humanos ofereciam uma direcção aos legisladores, mas não pensava que a sua geração tinha o direito de limitar os seus sucessores. Agora, o moralismo político tende a acreditar que a nossa tarefa é fundar uma sociedade justa de uma vez por todas.

Uma das características deste modo de pensar é bem representado pela caricatura do totalitarismo. Aí, os ditadores são conhecidos por elogiar as massas, declarando nelas a inspiração do progresso, enquanto na realidade elas representam pouco, sendo mesmo sujeitas a qualquer arbítrio. As democracias modernas apresentam um desenvolvimento paralelo. Os líderes são eleitos pelos cidadãos mas tratam-nos como se fossem estúpidos. Assim, surge o paradoxo que o eleitorado considerado tão obtuso pelos seus líderes tenha a autoridade de os eleger.

A asserção de trabalho do moralismo político é que todos são dependentes e estúpidos, sendo esta a decisão mais segura num mundo perfeito onde o erro não pode surgir. Numa sociedade perfeita, a moral e as maneiras são ferramentas frágeis porque as pessoas tendem a portar-se imoralmente. O próprio carácter dos cidadãos deve mudar, especialmente aqueles identificados como opressores. Os homens têm de deixar de ser machistas, os heterossexuais abandonar os seus privilégios, os brancos serem simpáticos com os negros, todos devemos ser menos obesos, menos suicidas, perder os vícios do álcool, do tabaco e das drogas. As leis menos opressivas que regem como os diversos grupos podem conviver em sociedade são substituídas por aquelas que manipulam as atitudes que esses mesmos grupos devem ter uns com os outros. Nesta nova forma, os seres humanos tornam-se uma matéria maleável de acordo com a tendência moral da época.

O eco do passado muitas vezes ilumina. Cui Bono? Quem beneficia?, perguntariam os Romanos. Num mundo igualitário todos são iguais (excepto, talvez, os gestores dessa igualdade). Num eventual futuro, haverá trabalho infinito para aqueles cujo negócio é determinar em progressivo detalhe as regras do jogo da vida, para adjudicar concórdias e conflitos, para ensinar os cidadãos quais os pensamentos que uma sociedade justa requer. Então a política terá morrido mas tudo será política.

(adaptado do livro Politics de Kenneth Minogue)

novembro 11, 2005

Trying

"I was trying so hard to be myself, I was turning into somebody else." - The The

novembro 10, 2005

Escolhas

Há uma distância variável entre o querer e o fazer. Neste espaço cabem tanto a bestialidade que a reduz a um quase nada, como as morais nos seus labirintos de desejos retidos. E ao escolher a ética e as leis que emanam desta distância, observamos quem as faça límpidas mesmo que com isso se vejam falhas, e quem as transforme num imaculado padrão lógico de regras por cumprir.

novembro 08, 2005

A sobrevivência da política (parte VI)

É difícil exagerar o alcance e significado desta transformação. Como foi atingido? A resposta geral é que o julgamento público não só catalogou o que é independente como egoísta, como focou o sofrimento dos pobres e dependentes como uma directiva moral dos nossos arranjos sociais. Até há pouco, os pobres não foram politicamente significantes. Mas no decorrer do século XIX, quando o sufrágio se generalizou, o cuidado social tornou-se tão relevante como antigamente a guerra o fora. Como os inimigos de outrora, os desfavorecidos tornaram-se politicamente interessantes porque constituíam uma razão para exercer poderes de governação e administração não aceites noutras situações. Eles tornaram-se tão interessantes que não se devia fazê-los desaparecer facilmente, e assim, há medida que as condições de vida aumentavam, as definições de pobreza foram-se actualizando para manter o seu número num nível adequado.

Foi desta forma que o estado do século XX descobriu a dependência, que anteriormente não tinha ocupado mais que uma pequena porção da esfera da moralidade. Uma virtude moral, a caridade, na sua forma politizada, expandiu-se para abranger a esfera política. Isto foi um desenvolvimento importante por diversas razões. Uma delas é que a dependência revela a direcção do pensamento religioso. Na essência do cristianismo, todos somos criaturas dependentes de deus. Agora, a nossa dependência é com a sociedade. Em termos marxistas, o indivíduo burguês (aquele que sofre da ilusão de ter subido por si só) corresponde, em termos cristãos, ao pecado do orgulho: ele coloca-se em vez de deus (ou da sociedade) no centro do universo. O ideal é todos contribuirmos altruisticamente para a sociedade, dela recebendo saúde, educação e outros serviços distribuídos por igual a todos os cidadãos.

novembro 03, 2005

Mapear

A burocracia é a vontade de transformar necessidades em procedimentos. Tem (talvez) o desejo nobre de servir na simplicidade que promete. Mas esse simplificar estimula o homogéneo que nos mistura. Forçar isso é pior do que nos ver como números ou fichas normalizadas, é querer reduzir-nos ao suficiente para a promessa ser cumprida.

novembro 02, 2005

A sobrevivência da política (parte V)

Como tudo na vida, a política é sobre escolhas difíceis. A forma mais agradável de as resolver é evitando-as e um abracadabra semântico ajuda nestes casos. Um novo significado de política tem emergido para resolver este dilema. A essência deste novo sentido é considerar que a política cobre todos os pequenos detalhes da nossa vida (tornando-se indistinguível da discussão sobre os valores [sLx:o exemplo da legislação da administração Bush relativa ao caso de Terri Schiavo é um bom exemplo]).

Para marcar bem este contraste, qual é o sentido usual da política? É a actividade de lidar com os negócios de uma associação civil - o estado - que providencia a estrutura básica onde os indivíduos podem produzir e consumir, associar-se uns com os outros e exprimir-se livremente. A política é definida pelos seus limites e estes limites são (ou devem ser) o mínimo necessário para a civilização funcionar.

Neste novo sentido de política, porém, não há limites. Onde as pessoas cortam os pulsos, as crianças são agredidas ou onde as lésbicas não são aceites, deve existir uma acção política que altere as atitudes para que, no fim, a harmonia prevaleça. A política desta forma torna-se (numa fórmula famosa da ciência política) "a atribuição impositiva de valores". Por outras palavras, um dos objectivos da sociedade é dizer-nos o que admirar e condenar.