outubro 04, 2012

Overton

A janela de Overton é um conceito da ciência política, introduzido por Joseph P. Overton, que descreve um facto social inescapável: os conceitos considerados aceitáveis para serem discutidos publicamente são muito limitados. Esta janela altera-se com o tempo, reciclando, esquecendo, introduzindo termos e ideias, soluções. Por exemplo, no século XIX era possível falar publicamente de políticas raciais ou de eugenia, mas agora seria equivalente a um suicídio político (ao ponto do corrector automático não conhecer a palavra eugenia e sugerir-me 'Eugénia'). Como exemplo inverso temos o casamento homossexual, algo aceitável para discussão hoje em dia, mas mesmo o mais racional, coerente e influente dos pensadores liberais de há 100 anos jamais ousaria discutir o tema em público. Não é certo que a janela se alargue com os anos, mesmo imaginando possível uma qualquer métrica. A única certeza empírica é a janela ser limitada. 

O transformar da opinião pública para que certas ideias passem de impensáveis para radicais, de radicais para aceitáveis, e finalmente de aceitáveis para essenciais, é um papel social da maior importância. É um caminho percorrido por inúmeras pessoas ao longo dos séculos, desde filósofos e políticos a outros agentes sociais. Os direitos humanos, a igualdade das mulheres, a abolição, a separação da Igreja e do Estado, a liberdade de expressão, o trabalho infantil, a independência da Justiça, todos elas consideradas ideias impensáveis algures no passado. Devemos muito a todos os que lutaram e sofreram as consequências para nos legar estas subtis mas críticas heranças. 

A minha opinião é que existe um problema muitíssimo grave com a actual janela de Overton. A civilização globalizada caminha para uma mudança radical, talvez inédita, mas não é possível abordar certos tipos de solução por políticos e outras figuras públicas que prezem a sua reputação. Esta mudança deriva de estarmos a atingir uma série de limites físicos do nosso planeta. Limites energéticos, sobre-população, o colapso de um sistema financeiro de natureza exponencial, uma pressão intolerável sobre o ecossistema. O tema do ecossistema é abordável mas não o é um certo tipo de raciocínio que aponta à sua resolução. Não é admissível explicitar a ligação integral entre o ecossistema planetário e a economia global. Não é possível admitir que o crescimento -- actualmente um conceito sacralizado -- possa ser negativo à economia e à sociedade, que é possível pensar políticas baseadas na estabilização da produção global (a steady-state economics) e não no crescimento infinito. Igualmente, não pertence à janela de Overton o constatar que todas estas questões estão relacionadas, e que os problemas económicos do Ocidente podem ser meros sintomas iniciais dos limites que estão a ser atingidos. 

Um exemplo particularmente difícil: será inevitável discutir a limitação do número de carros privados existentes. Estes são responsáveis pela maior parte dos cerca de 80% do consumo de petróleo mundial que é dedicado aos transportes rodoviários. A médio prazo (talvez 10, talvez 20 anos) este consumo crescente colocará em perigo o uso do petróleo (de extracção barata) para uma actividade à qual não existe alternativa: a aviação. Mas que político arriscaria informar a população que será preciso mudar a forma de nos deslocarmos para acomodar uma diminuição progressiva e a eventual proibição do uso de automóveis daqui a uma geração? A resposta é simples: ninguém. Este é um tipo de discussão que está totalmente fora da janela de Overton. O perigo é que se, e quando, este assunto entrar na discussão pública, a maior parte do combustível barato disponível estará já demasiado perto da exaustão. A partir daí o combustível da aviação ficará dependente de fontes fósseis muito mais caras, o que implicará o colapso do mercado aéreo para níveis de décadas atrás, pelo preço que os bilhetes atingirão para acomodar o preço do combustível. Poderá isto não acontecer? É possível. É possível que ocorra algum desenvolvimento tecnológico -- que os últimos 50 anos de investimento das companhias petrolíferas foram incapazes de conseguir -- e nos inundem de algum novo tipo de petróleo economicamente competitivo*. Mas não é provável. E no entanto, a probabilidade deste evento ocorrer é, literalmente, indiscutível.

* O pico de produção de petróleo convencional ocorreu por volta de 2006. [World Energy Outlook 2010, Key Graphs, p.7]

2 comentários:

JMS disse...

Descobri este blogue através da caixa de comentários de Question Everything. Fiquei muito contente por saber que neste país há pelo menos dois leitores de George Mobus, um autor a quem ficarei eternamente grato por me ter alertado para os constrangimentos biofísicos da economia (que eu, e com vergonha o confesso, ignorava quase por completo há um ano atrás), e me ter posto na pista de autores tão radicalmente iluminantes como Craig Dilworth, Guy McPherson, Thomas Homer-Dixon e Richard Heinberg.

Muita coisa interessante para ruminar neste seu blogue, de facto, e eu precisava agora de duas semanas de férias para o ler duma ponta a outra...

Cumprimentos,

JMS

João Neto disse...

Obrigado pelo comentário :-) Também descobri o seu blog há pouco tempo.

Ainda não há muitas pessoas sensíveis para o grande problema energético que temos nas mãos. Vai demorar uns anos, receio, até que o assunto chegue à massas. Resta saber o tempo que teremos antes de se começar a tentar desfazer alguns do erros do passado e presente.

Um abraço,

João