Overton
A janela de Overton é um conceito da ciência política, introduzido por Joseph P. Overton, que descreve um facto social inescapável: os conceitos considerados aceitáveis para serem discutidos publicamente são muito limitados. Esta janela altera-se com o tempo, reciclando, esquecendo, introduzindo termos e ideias, soluções. Por exemplo, no século XIX era possível falar publicamente de políticas raciais ou de eugenia, mas agora seria equivalente a um suicídio político (ao ponto do corrector automático não conhecer a palavra eugenia e sugerir-me 'Eugénia'). Como exemplo inverso temos o casamento homossexual, algo aceitável para discussão hoje em dia, mas mesmo o mais racional, coerente e influente dos pensadores liberais de há 100 anos jamais ousaria discutir o tema em público. Não é certo que a janela se alargue com os anos, mesmo imaginando possível uma qualquer métrica. A única certeza empírica é a janela ser limitada.
O transformar da opinião pública para que certas ideias passem de impensáveis para radicais, de radicais para aceitáveis, e finalmente de aceitáveis para essenciais, é um papel social da maior importância. É um caminho percorrido por inúmeras pessoas ao longo dos séculos, desde filósofos e políticos a outros agentes sociais. Os direitos humanos, a igualdade das mulheres, a abolição, a separação da Igreja e do Estado, a liberdade de expressão, o trabalho infantil, a independência da Justiça, todos elas consideradas ideias impensáveis algures no passado. Devemos muito a todos os que lutaram e sofreram as consequências para nos legar estas subtis mas críticas heranças.
A minha opinião é que existe um problema muitíssimo grave com a actual janela de Overton. A civilização globalizada caminha para uma mudança radical, talvez inédita, mas não é possível abordar certos tipos de solução por políticos e outras figuras públicas que prezem a sua reputação. Esta mudança deriva de estarmos a atingir uma série de limites físicos do nosso planeta. Limites energéticos, sobre-população, o colapso de um sistema financeiro de natureza exponencial, uma pressão intolerável sobre o ecossistema. O tema do ecossistema é abordável mas não o é um certo tipo de raciocínio que aponta à sua resolução. Não é admissível explicitar a ligação integral entre o ecossistema planetário e a economia global. Não é possível admitir que o crescimento -- actualmente um conceito sacralizado -- possa ser negativo à economia e à sociedade, que é possível pensar políticas baseadas na estabilização da produção global (a steady-state economics) e não no crescimento infinito. Igualmente, não pertence à janela de Overton o constatar que todas estas questões estão relacionadas, e que os problemas económicos do Ocidente podem ser meros sintomas iniciais dos limites que estão a ser atingidos.
Um exemplo particularmente difícil: será inevitável discutir a limitação do número de carros privados existentes. Estes são responsáveis pela maior parte dos cerca de 80% do consumo de petróleo mundial que é dedicado aos transportes rodoviários. A médio prazo (talvez 10, talvez 20 anos) este consumo crescente colocará em perigo o uso do petróleo (de extracção barata) para uma actividade à qual não existe alternativa: a aviação. Mas que político arriscaria informar a população que será preciso mudar a forma de nos deslocarmos para acomodar uma diminuição progressiva e a eventual proibição do uso de automóveis daqui a uma geração? A resposta é simples: ninguém. Este é um tipo de discussão que está totalmente fora da janela de Overton. O perigo é que se, e quando, este assunto entrar na discussão pública, a maior parte do combustível barato disponível estará já demasiado perto da exaustão. A partir daí o combustível da aviação ficará dependente de fontes fósseis muito mais caras, o que implicará o colapso do mercado aéreo para níveis de décadas atrás, pelo preço que os bilhetes atingirão para acomodar o preço do combustível. Poderá isto não acontecer? É possível. É possível que ocorra algum desenvolvimento tecnológico -- que os últimos 50 anos de investimento das companhias petrolíferas foram incapazes de conseguir -- e nos inundem de algum novo tipo de petróleo economicamente competitivo*. Mas não é provável. E no entanto, a probabilidade deste evento ocorrer é, literalmente, indiscutível.
* O pico de produção de petróleo convencional ocorreu por volta de 2006. [World Energy Outlook 2010, Key Graphs, p.7]
2 comentários:
Descobri este blogue através da caixa de comentários de Question Everything. Fiquei muito contente por saber que neste país há pelo menos dois leitores de George Mobus, um autor a quem ficarei eternamente grato por me ter alertado para os constrangimentos biofísicos da economia (que eu, e com vergonha o confesso, ignorava quase por completo há um ano atrás), e me ter posto na pista de autores tão radicalmente iluminantes como Craig Dilworth, Guy McPherson, Thomas Homer-Dixon e Richard Heinberg.
Muita coisa interessante para ruminar neste seu blogue, de facto, e eu precisava agora de duas semanas de férias para o ler duma ponta a outra...
Cumprimentos,
JMS
Obrigado pelo comentário :-) Também descobri o seu blog há pouco tempo.
Ainda não há muitas pessoas sensíveis para o grande problema energético que temos nas mãos. Vai demorar uns anos, receio, até que o assunto chegue à massas. Resta saber o tempo que teremos antes de se começar a tentar desfazer alguns do erros do passado e presente.
Um abraço,
João
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