julho 30, 2012

Cartas a Séneca

Encontro-me de costas para os augures. Observo o voo das aves e nada nele vejo. Os pássaros vão atrás uns dos outros, naquelas nuvens que fazem, na confusão e chilrear que aprendemos quando crianças a reconhecer. Ficaram alguns instantes nisto, como treinados, pareceu-me no meu tédio, para demorar certo tempo e não mais. Acabado o exercício voltaram para as toscas casas de madeira de onde os tinham libertados dois jovens no silêncio e com os olhos no chão durante o tempo que este teatro demorou. Paro um pouco a olhar para o mais alto dos dois. A cicatriz geométrica no ombro nu revela a sujeição ao culto, um símbolo que o acompanhará pela vida, reduzida a abrir portas a animais, no passar de utensílios nos sacrifícios, talvez a satisfazer as outras necessidades destes homens espirituais. E antes dele, quantas outras cicatrizes iguais, quantas dedicadas à antiguidade do mistério. O mais velho dos bruxos levantou-se, a encenar uma majestade nos gestos, uma imitação forçada que tanto contrasta com a facilidade natural daqueles que nascem e crescem nas nossas famílias romanas. Seguiu-se a ladainha do costume que enche o jus augurum, premonições e avisos, sentenças com as variações treinadas pela prática. O futuro, os receios vagos e não respondidos do presente, algo do nosso passado conhecido nesta cidade. A minha esposa ouve, com fervor, a leitura dos auspícios, o olhar fixo nos lábios do velho, eu fixo nos dela, o seu querer reduzido perante o culto. Na minha vontade, rápida e fugaz sim porém real, um desejo de ter este desejo, de acolher vontades de um passado que não o nosso. Algo das profundezas do que somos, talvez. Mas de mim visível, apenas eu quase imóvel, a abanar a cabeça levemente a mais esta superstição, apenas e mais outro luxo que suporto. Tanto que foi dito nas linhas vazias e cruzadas daquelas aves. A lembrar-me de alguma coisa pensaria no cruzar que os interesses, as ambições, a fortuna que nos limita uns contra os outros, uns com os outros, tão misteriosas e convolutas, tão caprichosas como os simples desejos de alguns pássaros. Que sinais são estes que precisamos, nós Romanos, ainda reconhecer? E que presságios esperamos encontrar no furtuíto do mundo natural que não encontramos na nossa filosofia? No fim, antes de sairmos, retive a mesma pergunta que raramente partilho, "Onde estão essas vozes que Aquiles, que Odisseus seguiam? As vozes que tanto se preocuparam e escreveram os antigos."

julho 27, 2012

O Pão, não o Circo.

A sociedade é um corpo de corpos a dirigir-se, em tumulto e pandemónio, numa direcção que não sabemos. Para se manter utiliza mecanismos de coesão que lhe garantem continuidade e cujo preço é uma inércia que aprendemos com a idade a amar e odiar. Convenções sociais, ética, comportamentos instituídos e ensinados desde criança, estados de alma e uma grelha de pensamentos apropriados. Uma vasta fábrica de gente. Isto facilita o sentido da acção justa, simplifica a moral vigente, o que se deve fazer ou evitar. Um jogo a justiça. Uma contabilidade de castigos e recompensas, um labirinto de sombras. Nisto o Dr. Spleen observa a vítima, prostada na mesa de cirurgia de um qualquer esqueleto de hospital abandonado. Pensa como tudo isto é reflexo de um corpo humano. O que na pele e sangue é analogia à comunidade? Com que regras jogamos e perdemos? Qual o processo? Como os mecanismos inatos, automáticos, nos levam entre A e B, entre o início e o fim do tempo e da acção. O fim, essa taxa democrática, avizinha-se a todos. Especialmente para alguém, como o padeiro da aldeia, cujo desleixo impensado conduz ao erro e irreversível castigo.

julho 24, 2012

Metáforas

"Humans think metaphorically. Most of our thoughts are built up of more primitive metaphors. Our most atomic metaphors are hard-wired in as a result of where we evolved. One of those hardwired metaphors is something we commonly call 'I.' It's the metaphor of self-as-object." Lakoff and Johnson, Metaphors We Live By

Ano 2112

Se daqui a cem anos, assumindo que conseguimos evitar o colapso económico e ecológico global, como reagirão as pessoas à sociedade actual? Sendo optimista, listo alguns pontos que os poderiam revoltar:

  • A profunda rede de influências entre o poder político e o poder financeiro. Quão forte é a ligação entre as grandes corporações e os governos dos estados que repetidamente passam por cima dos interesses do resto da sociedade.
  • As proibições arbitrárias, os crimes sem vítimas, independentemente do impacto social que a sua aplicação provoca. O principal exemplo é a guerra contra as drogas. Outras restrições legais, também de origem religiosa, são os boicotes a direitos individuais como a eutanásia voluntária e à interrupção prematura da gravidez.
  • A sangria constante do domínio púlico para satisfazer os interesses parasitas das indústrias de copyright e da legislação actual das patentes.
  • A relevância de várias crenças anti-evidência e anti-razão, como a astrologia, as medicinas alternativas, a crença no crescimento ilimitado, o negar do aquecimento global ou da depleção dos recursos físicos da Terra.
  • Quão generalizada continua a confusão entre crenças divinas e Ética. Quão aceite é a influência política e pedagógica dos vários líderes religiosos.
  • O estado do Estado de Direito. A correlação forte entre riqueza e protecção judicial, e como a legislação é tornada complexa e inacessível para proteger quem pode contratar os melhores advogados. Como os partidos influenciam o ramo legislativo do Estado de forma a criar legislação conveniente.
  • O grau de controle editorial e censura dos mass media promovido pelos interesses e compromissos das respectivas estruturas financeiras.
Optimismos...

julho 18, 2012

O outro lado do argumento

"The case for guaranteed mutual benefit in international trade, and hence the reason for leaving it “free”, is based on Ricardo’s comparative advantage argument. A country is supposed to produce the goods that it produces more cheaply relative to other goods, than is the case in other countries. By specializing according to their comparative advantage both trading partners gain, regardless of absolute costs (one country could produce all goods more cheaply, but it would still benefit by specializing in what it produced relatively more cheaply and trading for other goods). This is logical, but like all logical arguments comparative advantage is based on premises. The key premise is that while capital (and other factors) moves freely between industries within a nation, it does not move between nations. If capital could move abroad it would have no reason to be content with a mere comparative advantage at home, but would seek absolute advantage—the absolutely lowest cost of production anywhere in the world. Why not? With free trade the product could be sold anywhere in the world, including the nation the capital just left.  While there are certainly global gains from trade under absolute advantage there is no guarantee of mutual benefit. Some countries could lose.   

Now comes the problem. The IMF preaches free trade based on comparative advantage, and has done so for a long time. More recently the IMF has started preaching the gospel of globalization, which, in addition to free trade, means free capital mobility internationally—exactly what comparative advantage forbids! When confronted with this contradiction the IMF waves its hands, suggests that you might be a xenophobe, and changes the subject.", Herman E DalyA Steady-State Economy [pdf]

julho 12, 2012

Capitalismo e Mercados



We are used to thinking of such bureaucratic interventions­ particularly the monopolies and regulations - as state restriction on "the market" - owing to the prevailing prejudice that sees markets as quasi-natural phenomena that emerge by themselves, and governments as having no role other than to squelch or siphon from them. I have repeatedly pointed out how mistaken this is, but China provides a particularly striking example. The Confucian state may have been the world's greatest and most enduring bureaucracy, but it actively pro­moted markets, and as a result, commercial life in China soon became far more sophisticated, and markets more developed, than anywhere else in the world. This despite the fact that Confucian orthodoxy was overtly hostile to merchants and even the profit motive itself. Commercial profit was seen as legitimate only as compensation for the labor that merchants expended in transporting goods from one place to another, but never as fruits of speculation. What this meant in practice was that they were pro-market but anti-capitalist. Again, this seems bizarre, since we're used to assuming that capital­ ism and markets are the same thing, but, as the great French historian Fernand Braude! pointed out, in many ways they could equally well be conceived as opposites. While markets are ways of exchanging goods through the medium of money-historically, ways for those with a surplus of grain to acquire candles and vice versa (in economic shorthand, C-M-C', for commodity-money-other commodity)-capitalism is first and foremost the art of using money to get more money (M-C-M'). Normally, the easiest way to do this is by establishing some kind of formal or de facto monopoly. For this reason, capitalists, whether merchant princes, financiers, or industrialists, invariably try to ally them­selves with political authorities to limit the freedom of the market, so as to make it easier for them to do so. From this perspective, China was for most of its history the ultimate anti-capitalist market state. David Graeber, Debt: The First 5000 Years

julho 06, 2012

O mito da Quimera

A quimera na mitologia Grega era um monstro fêmea, uma mistura de leão, cabra e cobra com um terrível bafo de fogo. Foi morta pelo herói Belerofonte com a ajuda de Pégaso, o cavalo alado.
Nas lendas existem vários animais quiméricos, misturas de dois ou mais animais, como a Esfinge, o Minotauro, os Centauros, as Hárpias... Estas são instâncias mais velhas do mito do herói e do dragão e, elas próprias, ecos de mitos ainda mais antigos. Por exemplo, numa imagem de um tempo Babilónico observamos a luta de uma leão alado com um herói igualmente capaz de voar [1].

Mas qual o significado do mito, para além do óbvio tropo "herói corajoso mata monstro assustador" transformado em cliché por tantos livros, filmes e séries de TV? Ugo Bardi [2] sugere que o mito espelha a perene luta entre a humanidade e a natureza, entre o desejo de uma ordem para a sociedade e o medo do caos incontrolável e desconhecido do mundo selvagem. A relevância deste mito e desta luta, nos dias que correm, é a vitória esmagadora que os Homens estão a infligir ao nomeado «monstro». Só que, ironicamente, precisamos do monstro para sobreviver.  Sem uma ecosfera funcional, a Humanidade arrisca-se a desaparecer. Também Belerofone, o assassino da Quimera, morreu cego, aleijado, miserável.

[1] http://www.unifi.it/surfchem/solid/bardi/chimera/origins.html
[2] http://cassandralegacy.blogspot.pt/2012/06/making-peace-with-our-chimeras.html