março 03, 2011

Ideologia

A ideologia é uma falha cognitiva humana que impede um sujeito de processar evidência incompatível com os seus princípios. Isto costuma ocorrer de forma inconsciente e automática. Ninguém está a salvo deste problema. Os preconceitos e as inclinações são-nos naturais e é apenas através de um esforço crítico constante que conseguimos lutar contra esta tendência. A partir de um certo nível, a cegueira ideológica pode transformar-se em fanatismo (religioso, político) onde nenhuma evidência contrária é considerada. O fanático é um sujeito que habita um mundo maniqueísta de certezas e dogmas revelados.

Sou da opinião que a filosofia liberal (no sentido clássico do termo) deu-nos a resposta mais apropriada para lidar com este problema. Uma atitude liberal assenta no admitir sempre a possibilidade que o outro possa ter razão, e que é errado coagi-lo para que não proponha soluções diversas. Ou seja, a promoção da tolerância. A tolerância tem custos e riscos (devemos ser tolerantes em relação aos fanáticos? deve ir a eleições um partido antidemocrático?) mas, no geral, é uma aproximação pouco ideológica que, diz-nos a experiência, é capaz de lidar com o bem comum.

Ser tolerante não significa aceitar de igual modo todas as soluções ou que todas elas são igualmente válidas (as teses sofistas ou pós-modernas). Cada solução é suportada em argumentos e evidência, o que lhes atribui um certo grau de qualidade e viabilidade. Uma solução é melhor se do seu lado houver mais argumentos a favor que contra, mais evidência positiva que negativa. Sem informação relevante não podemos ter convicções fortes que uma política é melhor que outra, ou seja, não há soluções absolutas nem argumentos últimos. Há sim um acumular de razões, de teorias, de experiências que podemos usar para melhorar as nossas decisões presentes e futuras.

Estas noções são subjacentes às sociedades liberais modernas, sejam elas conservadoras, social-democratas ou liberais (eis uma palavra com demasiados usos...). A tolerância, a democracia, os direitos fundamentais são conceitos considerados não negociáveis na cultura dita ocidental e tão óbvios que os assumimos naturalmente. Por um lado isto seria expectável porque estes conceitos correspondem a uma prática política e social que obteve muitos sucessos e trouxe uma melhoria geral nas condições de muitos povos, principalmente se comparados com a esmagadora maioria dos estados totalitários. Por outro, é um pouco surpreendente dada a sua implementação social, em termos históricos, ser muitíssimo recente e estando ainda por concluir (lembrar as polémicas e alergias gregárias que levantam os direitos dos homossexuais ou o aceitar da eutanásia activa).

Tendo em conta o carácter axiomático que um liberal clássico dá às liberdades individuais, uma política só é adequada se a sua execução não colocar essas liberdades em risco. Este ponto pode ser usado para arremessar a acusação ideológica ao liberal. Sem grande surpresa existe a variante fanática do liberalismo, os libertários, que advogam a quase total obliteração do estado com a premissa ideológica que nada que provenha do estado é positivo. Como qualquer tipo de pensamento fortemente ideológico, esta posição política é irracional sendo cega a factos históricos indiscutíveis (como a abolição da escravatura, a emancipação das mulheres ou a escolaridade universal, só para dar três exemplos básicos).

Como se disse no início, não parece ser possível erradicar as inclinações e preconceitos de um ser humano. Mas isso não significa que devamos minimizar o seu efeito. Ora um liberal também traça uma linha perante a qual não recua; um liberal não é um anarquista ou um niilista. Essa linha existe para defender os direitos fundamentais de cada pessoa (sendo crítica a discussão de quais exactamente são esses direitos). O que o liberal acredita é que essa linha não deve desenhada em favor de qualquer projecto social idealizado no passado (típico do conservador radical) ou no futuro (do progressista radical).

Argumenta o pensamento liberal que a livre expressão de todas as opiniões é o melhor caminho para apresentar, debater e encontrar soluções sustentadas. Estas soluções poderão, se a comunidade assim o entender, ser experimentadas no âmbito público. Daqui a necessidade da democracia para legitimar esta dinâmica pública de discussão. Prefere-se o uso de políticas suportadas na experiência, adaptáveis às circunstâncias presentes e resultados passados do que aquelas inspiradas em dogmas e certezas ideológicas. E se as soluções escolhidas ficarem aquém do prometido, o debate livre de ideias, alimentado com a nova evidência da experiência anterior, será capaz de propor e implementar novas soluções. Por isso um liberal clássico pode concordar com políticas conservadoras ou progressistas mas é totalmente incompatível com a execução de políticas totalitárias (pela sua própria natureza, antidemocráticas).

Não é de admirar que as sociedades liberais do ocidente se baseiam na experimentação (muitas vezes sincronizadas com ciclos eleitorais ou remodelações governamentais) e que esse experimentar produza múltiplos falhanços e, devido à inércia social e legislativa, num acumular de gordura estatal e burocracia redundante. O motivo é que elas também nos oferecem uma dinâmica e poder de adaptação que, mostra-nos a história dos últimos séculos, não encontra paralelo com governos ideológicos, fundados no absoluto tão típico dos regimes totalitários e teocráticos.

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