novembro 27, 2009

Excessos

[entrevista à ípsilon, 6 Novembro 2009]

António Marujo: Dê um exemplo das más traduções da Bíblia [...]

Enri de Lucca: No original hebraico, não está a condenação de Eva de parir com dor. A palavra hebraica é esforço, fadiga. Não é dor, porque ali não há intenção punitiva da divindade. Há apenas uma verificação. Àqueles dois, que comeram da árvore do conhecimento do bem e do mal e que se encontraram nus, diz: "Vocês tornaram-se outra coisa, não pertencem já a nenhuma espécie animal; nenhuma espécie animal sabe que está nua; aconteceu uma mudança total." Está dizendo que a felicidade, a agilidade do parto ou naturalidade com que os animais têm os filhos não acontecerá mais. E Adão diz logo: "Maldita a terra". Porquê, se a terra não lhe fez nada? Porque há outra verificação: Adão não se contentará com o fruto espontâneo, mas esforçará a terra, irá afadigá-la também com o seu suor, irá desfrutá-la para tirar o maior lucro. A terra será maldita por causa dos esgotamento dos recursos.

Não há, então, um castigo?

Vê-se que não há intenção punitiva, porque logo a seguir a divindade faz vestes de peles para cobrir aqueles dois nus. Este é o gesto mais afectuoso. A palavra hebraica que aqui é traduzida como dor, aparece outras cinco vezes: quatro nos Provérbios e uma nos Salmos. Cinco vezes em seis é traduzida como esforço e fadiga. Ali, metem na boca da divindade uma condenação. E sobre isto baseou-se toda a subordinação feminina, a culpa de Eva.
Enri de Lucca (que não é cristão) lê a Bíblia directamente do hebraico e faz uma interpretação mais humana do texto original, a qual faz mais sentido, pelo menos numa perspectiva moderna e liberal (a meu ver, exagerando com a referência ecológica). Mas o mito do Adão e Eva, por razões de controle social, fruto de políticas e preconceitos enterrados na história, tem uma versão oficial indoutrinada durante séculos de gerações cristãs. Como contraste entre a tradução de Lucca e a oficial percebe-se melhor a hipocrisia e misoginia de uma hierarquia episcopal que compõe a Igreja desde o início da Idade Média. Como é estúpido esse pretenso castigo desmesurado (e nesse excesso absurdo o intuir do que realmente sustenta esta religião, o infantilismo e a ignorância) do desejo de saber, crescer. De ser-se adulto.

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