fevereiro 27, 2006

Impossibilidade v.2.0

"Tudo pode acontecer menos o impossível" foram as palavras moldadas em verdade indiscutível que ouviram de Santos, o gerente do restaurante, enquanto lavava o chão com lixívia perfumada. Kong sénior, em pé e de volta da casa-de-banho, argumentou ser essa uma frase óbvia porque baseada numa definição. Essa diferença (i.e., entre obviedades e verdades), mais ou menos esbatida pela ignorância de cada um, era a diferença que ia do ponto de partida, dos axiomas que confiamos, até ao ideal da chegada (Kong sénior não acreditava na materialidade de uma só resposta definitiva mas aceitava, com alguma fogosidade, a pertinência das perguntas). O Doutor Spleen mantém-se metódico no corte da fotografia do Inspector Rousseau e indiferente à discussão stereo que o envolve. Para ele, impossível é como fazer uma máquina que, recebendo um ovo mexido, produza um ovo intacto. Impossível até se meter na máquina uma galinha.

fevereiro 23, 2006

Função e Ambiente

Qualquer estrutura funcional contém informação implícita sobre o ambiente onde essa função trabalha. As asas de uma gaivota encerram, de forma magnífica, os princípios da aerodinâmica e, por isso, um ser com estas asas está adaptado a um voo numa atmosfera com determinada densidade e viscosidade. Suponha-se que preservamos o corpo de uma gaivota, colocamo-la numa cápsula espacial (sem qualquer explicação adicional) sendo descoberta por ETs. Se estes fizerem a asserção fundamental que as asas são funcionais e que a sua função era voar (o que pode não ser tão óbvio como isso) eles usariam estas assumpções para retirar informação valiosa sobre o ambiente no qual estas asas foram desenhadas. À seguinte pergunta: como é que esta informação surgiu nas asas?, teríamos a resposta: pela interacção dos antepassados da gaivota com o ambiente – Daniel Dennet Darwin’s Dangerous Idea

fevereiro 21, 2006

Função e sentido

Não se pode atribuir significado a uma função sem observar a história e o contexto do seu fabrico. Por exemplo, pode ser um equívoco interpretar a dimensão da grande pirâmide sem conhecer as capacidades de construção da civilização Egípcia ou a volumetria das pedreiras usadas. Talvez as medidas exactas não tenham um sentido místico e sejam apenas a consequência das limitações daquela época.

fevereiro 20, 2006

Relações

O dia começa durante as escadas. Naqueles cinco andares quanto suor quantos degraus pisados? O Doutor Spleen não gosta de elevadores e não gosta de quem gosta de elevadores. Os seus ajudantes, incapazes de perceber suficiente matemática para definir uma operação transitiva, sabem por experiência ser ajuizado acompanhar aquele passo rápido que, em cada repetição, deixa um degrau por pisar (para ser exacto, os degraus ímpares se assumirmos o primeiro de cada lance como o degrau zero, por onde ele teima em começar). Degrau zero é, aliás, uma expressão usada por Spleen nos mais inesperados momentos e que designa, segundo Kong sénior, o menor elemento da cadeia que é preciso esmagar (não há consenso, porém, nesta interpretação). Kong sénior pensa muito neste assunto durante as repetidas insónias à luz brilhante do meio-dia (que as persianas quase seculares não conseguem deter) e cuja relevância temática é multiplicada pelos cento e quarenta quilos de músculo e gordura que carrega nestes fins de noite.

fevereiro 16, 2006

Construção

Há, talvez, dois tipos de deveres. Uns que são reflexos de direitos (o dever de não matar é o direito à vida), outros apenas restrições sem aparente que os balance. Os primeiros são o espirito da Lei. Os segundos, tijolos de um eventual inquisitório.

fevereiro 14, 2006

Escolha

Não se pode evitar que a política se mova no seio de uma religião ortodoxa. Esta luta de poder permeia o treino, a educação e a disciplina da comunidade ortodoxa. Por causa desta pressão, os líderes da comunidade inevitavelmente terão de defrontar aquela questão derradeira: ou sucumbir ao completo oportunismo como preço para manter o poder, ou arriscar-se a um sacrifício pela sua ética. - Frank Herbert

fevereiro 13, 2006

Navegação

O Doutor Spleen nem sempre confia no sistema dedutivo/empírico do método científico. Apesar de admitir a sua força conceptual (e esta admissão é-nos constatável pelo estatuto especial de narrador, no qual estou, por acaso, investido, já que Spleen não discute epistemologia), ele acredita que o instinto e a sensibilidade proveniente dos insondáveis abismos da psique humana são ferramentas essenciais à obtenção do génio e das acções que o caracterizam. Dessa forma, o acto que conjuga a sua determinação com os impulsos dos seus desejos é, em parte, um improviso, um navegar imprevisto ao sabor dessa tempestade que são os factos. Tudo isto, mesmo que um pouco abstracto, é o que lhe atravessa agora a mente após usar o manípulo do contentor de lixo para suprimir os quatro agentes do Inspector Rousseau daquela elaborada armadilha.

fevereiro 10, 2006

Olhar

Para atribuir semântica necessito do referente, o objecto concreto ou abstracto que se torna imagem dos nossos olhares. Quando escrevo «árvore» concedo um significado originado num género de seres vivos que identificamos como tal. Mas não será a presunção de existência desse objecto parte da semântica dada? Para uma formiga ou um extraterrestre fará sentido esse objecto árvore por nós destacado?

fevereiro 07, 2006

v.v.

Magritte - Dois Mistérios, 1966
Magritte - Dois Mistérios, 1966

O mapa nunca será o território. Nem vice-versa.

fevereiro 06, 2006

Equilíbrio

O tempo é isso mesmo. Não mais nem menos. De resto há espaço, energia e (segundo dizem) informação. Kong Jr. lê os jornais à procura do anúncio que melhor se encaixe no padrão referido. Anda nisto há três dias e pela sua voz passaram algumas das possibilidades mais mirabolantes (aquelas que, segundo a sua limitada mas compulsiva mente, mais se aproximam). O Doutor Spleen ouve, corta as unhas e nele misturam-se dois sentimentos. Por um lado - e sem qualquer emoção primária à mistura - apetece-lhe estrangulá-lo com paciência e demorada preparação. Por outro, sorri pelo constatar diário que a realidade e o mundo que nela habita são fontes inesgotáveis de ideias e oportunidades. Este último tem (como o leitor poderia ter concluído sozinho mas vivemos num mundo de facilidade e não serei eu a mudá-lo) ganho sobre o primeiro.

fevereiro 02, 2006

Genética

Ler é uma aptidão adquirida de complexidade prodigiosa mas isto não é motivo para ser céptico sobre a possível existência de um gene da leitura. Tudo o necessário para estabelecer um gene da leitura é descobrir um gene da não-leitura, por exemplo um gene que induza uma lesão cerebral que cause uma dislexia específica. Uma pessoa com esta dislexia poderia ser normal e inteligente nos restantes aspectos excepto que não conseguiria ler. Claro, o gene apenas produz o seu efeito num ambiente que inclua uma educação normal. Na pré-história este defeito poderia não ter qualquer efeito detectável ou talvez resultasse num outro efeito (como a incapacidade de interpretar pegadas animais). No nosso ambiente civilizado seria chamado um gene da dislexia, dado ser a dislexia a sua consequência mais saliente. De igual forma, um gene que cause cegueira também impede a leitura mas não seria útil vê-lo como um gene da não-leitura porque não permitir ler não é o efeito fenotípico mais óbvio ou debilitante - «The Extended Phenotype», Richard Dawkins

fevereiro 01, 2006

Peso

O que precisamos para pensar é igualmente peso que carregamos. São milhões de livros, de teses medíocres ou geniais (ou nem por isso), um palimpsesto de séculos de civilização, tudo construção que nos protege mas também nevoeiro. Como sair deste novelo e inovar? Como ser original, ir contra o edifício que nos sustenta, e ter razão? Pois por cada Tróia descoberta há mil Atlântidas inventadas.