julho 21, 2005

Exteriorização

Quando o tirano me ameaça e convoca, eu respondo, ‘quem é esse que intimas?‘. Se ele diz, ‘colocar-te-ei em grilhetas’, eu respondo, ‘é a minha mão e os meus pés que ameaças’. Se ele diz, ‘decapito-te’, eu digo, ‘é o meu pescoço que ameaças’… Então ele não te ameaça de forma alguma? Não, desde que eu considere que nada disso sou eu. Mas se eu me deixar levar por estas intimidações então sim, ele ameaça-me. O que sobra para eu ter medo? Um homem que domine as coisas em meu poder? Não existe tal homem. Um homem que domine o que não está em meu poder? Porque me preocuparia eu com ele? [Discursos, Epictetus]

Uma citação de um filósofo estóico latino, um ex-escravo admirado pelo imperador Marco Aurélio. O que somos? Continuo a ser eu sem um braço, uma perna, a voz. Se nos retirassem a maioria do corpo e continuássemos a viver, nada de essencial em nós mesmos se perderia. Mudaríamos, claro, com a falta de mobilidade, de expressão, dos sentidos mas mudança é um processo a que nos submetemos desde a nascença. Algo em nós, talvez uma invariante psicológica mantém esta identidade que imaginamos reflectida no espelho quando fechamos os olhos. A identidade, a ânsia do eu pode ser uma ilusão, um fluido social, mas é suficientemente concreto para carregar, por exemplo, a responsabilidade ou este querer da consciência. Porém, qual a redução a que nos podemos impor? Que dimensão pode ter este ponto do qual retiramos esse resto exposto como objecto manifestado?

julho 20, 2005

Ponto

Entre as infinitas fronteiras do misticismo e a aridez do cepticismo absoluto, onde nos devemos sentar para beneficiar dos melhores horizontes?

julho 18, 2005

Livre Arbítrio (2/2)

É comum pensar que o ambiente é mais ‘amigável’ por ser mais facilmente manipulado. Depende. Em termos profiláticos, adaptar o ambiente para melhorar certas condições pode ser mais fácil que a terapia génica (i.e., corrigir deficiências no ADN) mas as próximas décadas de avanço tecnológico terão a palavra. Porém não se pode modificar o ambiente do que se passou (não podemos ter pais novos ou mudar o país onde nascemos) da mesma forma que não se pode, hoje, alterar a nossa herança genética.

As influências do ambiente e da herança genética têm a sua quota de influência (que varia ao sabor dos avanços e recuos civilizacionais). Mas não há mais nada? Mesmo num contexto onde o ambiente é controlado e a componente cultural não existe (e.g., experiências com bactérias ou insectos), a genética não determina totalmente as características dos indivíduos. Dois clones do mesmo organismo têm corpos distintos. Uma razão (haverá outras) é a componente não-linear do processo embrionário, ou seja, a existência de fenómenos caóticos que, para todos os efeitos, têm carácter aleatório (mesmo sendo o sistema totalmente determinista). Há sempre espaço para a “sorte” na discussão entre o ambiente e a genética. Esta facto tem uma implicação importante: determinismo não implica inevitabilidade. Mas nesta luta de decidir o futuro entre ambiente, genética e acaso, haverá espaço para mais alguma coisa? Qual a margem de manobra reservada a nós próprios? Refs [Gould 78, Dennet 04]

julho 15, 2005

Livre Arbítrio (1/2)

O determinismo genético defende serem os genes responsáveis pelas características dos indivíduos. Diz-nos que a herança genética imprime traços inevitáveis sendo, no máximo, orientados pelo ambiente, pela cultura e por vontade própria. Levada ao extremo (tudo são traços inevitáveis) ninguém acredita nesta interpretação: eu tenho miopia genética mas uso óculos, não para orientar mas para anular este traço; se tenho uma deficiência genética alimentar, posso eliminar a deficiência com uma dieta própria… O extremo oposto (“o ambiente cultural imprime traços inevitáveis sendo, no máximo, orientados pela genética e por vontade própria”) é igualmente falso: a sociedade pode apoiar a gravidez masculina mas isso não ajuda muito aos homens terem filhos (a ser verdade possibilitaria efeitos muito funestos: seria possível arquitectar formigueiros humanos após algumas gerações de engenharia social). Existem traços genéticos que, actualmente, não se podem modificar. Por exemplo, é inevitável envelhecermos (por muito cuidado que tenhamos, por muito pacífica que seja a civilização) e este facto é geneticamente determinado. [cont.]

julho 13, 2005

Singularidades

Dificilmente o termo "nenhuma verdade" se encaixa melhor noutro contexto que na pretensão de política.

julho 11, 2005

Auto-retrato

O que dentro de nós nos compõe? A que distância, lá fora, está o mundo? Os medos coleccionam e classificam-nos. Quantos temos pavor da dor?, pânico da solidão?, do ridículo? Como pintar o quadro destas fobias, sair dele e observar as linhas finas de um rosto, nosso, desvendado? Como, se nunca passarmos os receios que restringem (educam) o possível do social que nos fez gente?

julho 08, 2005

não saibam nada

O homem não se alimenta de verdade, o homem alimenta-se de respostas. Jovens das gerações futuras ouçam bem o que eu vos digo: não saibam nada; tenham resposta para tudo. Deus nasceu dessa preferência! Deus e a estatística! - Daniel Pennac (descoberta por robur)

julho 06, 2005

Merecimento

O leilão é uma eucaristia de preços discutidos.

julho 04, 2005

Nós

Na última feira do livro, na Antígona, comprei um livro pela contracapa ("A obra que inspirou 1984"). Chama-se "NÓS" e foi escrito pelo russo Evgueni Zamiatine em 1920. É uma das primeiras distopias escritas no século XX. Distopia é uma palavra cara para "utopia que deu para o torto" (como se alguma utopia o pudesse evitar) e precede as obras mais conhecidas de Orwell, Huxley e Bradbury. Como nestas, a sociedade descrita defende-se numa argumentação quase impossível de refutar dentro do quadro mental a que recusa os cidadãos de sair. Em "NÓS" é a distinção entre liberdade e felicidade, identificando a primeira com o peso das opções, a responsabilidade do erro, o possivel do crime; enquanto a felicidade é o produto gelado da racionalidade cega a uma Verdade. Deixo-vos com um excerto/aperitivo:

"Nós seguimos em frente, como um só corpo com milhões de cabeças, e dentro de cada um de nós reinava a suave alegria que constitui, provavelmente, a vida das moléculas, dos átomos, dos fagócitos. No mundo antigo, os cristãos compreendiam bem o que isso era: a modéstia é uma virtude, o orgulho é um vício; compreendiam também que Nós vem de Deus, ao passo que Eu vem do Diabo.

Lá ia eu, caminhando ao passo como todos, mas, apesar de tudo, isolado deles. Tremia ainda no seguimento das perturbações recentes, tal como treme a ponte sobre a qual passou um comboio daqueles de antigamente. Tinha consciência de mim mesmo. Ora o conhecimento de si, o reconhecimento da própria individualidade só o têm o olho onde acaba de cair um cisco, o dedo esfolado, o dente dorido. Quando sãos, o olho, o dedo, o dedo não têm existência alguma. Não prova isto claramente que a consciência de si é de facto uma doença?"