Quando o tirano me ameaça e convoca, eu respondo, ‘quem é esse que intimas?‘. Se ele diz, ‘colocar-te-ei em grilhetas’, eu respondo, ‘é a minha mão e os meus pés que ameaças’. Se ele diz, ‘decapito-te’, eu digo, ‘é o meu pescoço que ameaças’… Então ele não te ameaça de forma alguma? Não, desde que eu considere que nada disso sou eu. Mas se eu me deixar levar por estas intimidações então sim, ele ameaça-me. O que sobra para eu ter medo? Um homem que domine as coisas em meu poder? Não existe tal homem. Um homem que domine o que não está em meu poder? Porque me preocuparia eu com ele? [Discursos, Epictetus]
Uma citação de um filósofo estóico latino, um ex-escravo admirado pelo imperador Marco Aurélio. O que somos? Continuo a ser eu sem um braço, uma perna, a voz. Se nos retirassem a maioria do corpo e continuássemos a viver, nada de essencial em nós mesmos se perderia. Mudaríamos, claro, com a falta de mobilidade, de expressão, dos sentidos mas mudança é um processo a que nos submetemos desde a nascença. Algo em nós, talvez uma invariante psicológica mantém esta identidade que imaginamos reflectida no espelho quando fechamos os olhos. A identidade, a ânsia do eu pode ser uma ilusão, um fluido social, mas é suficientemente concreto para carregar, por exemplo, a responsabilidade ou este querer da consciência. Porém, qual a redução a que nos podemos impor? Que dimensão pode ter este ponto do qual retiramos esse resto exposto como objecto manifestado?