julho 28, 2004

Um ano de Ruminações

Nos últimos tempos li/reli quatro livros cuja temática é a restrição da liberdade individual face à arbitrariedade de um colectivo mais ou menos abstracto. Estes livros são:
  • 1984 de George Orwell. A vida de Winston Smith num regime ditatorial que absorveu todos os aspectos públicos e privados dos seus habitantes."It was terribly dangerous to let your thoughts wander when you were in any public place or within range of a telescreen. The smallest thing could give you away. A nervous tic, an unconscious look of anxiety, a habit of muttering to yourself—anything that carried with it the suggestion of abnormality, of having something to hide."
  • Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. O despertar de Guy Montag de um mundo de conteúdo simplificado onde livros são objectos para queimar. "Give the people contests they win by remembering the words to more popular songs.... Don't give them slippery stuff like philosophy or sociology to tie things up with. That way lies melancholy."
  • O Processo de Franz Kafka. Joseph K. vê-se como réu de um processo judicial que não entende. "Não é necessário aceitar tudo como verdadeiro mas apenas aceitar aquilo que é necessário."
  • Darkess at Noon ("O Zero e o Infinito" nas Ed. Europa-América) de Arthur Koestler. Nicholas Rubashov é um membro da velha guarda revolucionária da União Soviética (este livro é o único dos quatro que ocorre num país concreto e trata de acontecimentos verídicos mesmo que ficcionados) que se vê enredado nas purgas estalinistas dos anos 30. "A sua tarefa é simples: dourar o que é certo, enegrecer o que está errado. A política da oposição está errada. A sua tarefa é, pois, fazer com que a oposição se torne desprezível; fazer com que as massas compreendam que a oposição é um crime e que os dirigentes da oposição são criminosos. É esta a linguagem simples que as nossas massas compreendem. Se começar a falar das suas complicadas motivações, só conseguirá criar confusão nos espíritos."
Os mundos descritos, desde Kafka até Koestler, são visões pessimistas de um futuro que não ocorreu ou que falhou. A liberdade individual (numa grande parte do planeta...) tem sobrevivido a guerras mundiais, a regimes totalitários, à corrupção, à ignorância, à indiferença. Protegem-nos a democracia, o estado de direito, a justiça, a liberdade de expressão cuja filha mais recente é a blogoesfera. E nesta, mesmo imersa em lixo e desinformação, é difícil esconder o seu pulsar de originalidade, de novas ideias e pontos de vista, de prosa, poesia, imagens, informação, de atenção ao que a rodeia. Nem tudo são pesadelos de prisões ou promessas de fronteiras. Aqui construímos horizontes e canções sobre esses horizontes.

julho 26, 2004

Não se pode provar uma negativa universal? (parte II)

Os cientistas preferem as explicações naturais à sobrenaturais, não devido a um preconceito metafísico, mas porque as explicações naturais produzem um melhor entendimento do que nos rodeia. Como Platão disse, dizer que foi Deus não é explicar, é apenas uma desculpa por não ter uma explicação. A eficácia de uma explicação é determinada pela forma como sistematiza e unifica o nosso conhecimento. A extensão desta sistematização é medida por diversos critérios como a simplicidade (o número de asserções que faz), conservadorismo (se se encaixa nas teorias naturais vigentes) e utilidade (se faz novas predições com sucesso).

Explicações sobrenaturais são inerentemente inferiores às naturais. Por exemplo, são menos simples porque assumem a existência de entidades sobrenaturais (fantasmas, poltergeist, anjos, deuses, relações não triviais como na astrologia); não explicam os fenómenos de forma conveniente, produzindo mais perguntas que respostas; são menos conservativas porque é normal violarem leis naturais; não são úteis porque não são aptas para preverem acontecimentos novos. Por isso os cientistas as evitam.

[...] E se não existir uma razão natural plausível para algum fenómeno? Poderá isso justificar a existência de Deus? A nossa incapacidade para encontrar uma explicação conveniente pode simplesmente ser devido à nossa ignorância sobre o funcionamento das leis naturais. Muitos fenómenos que já tiveram explicações sobrenaturais como vulcões, terramotos e doenças são agora entendidos como fenómenos naturais. Como Santo Agostinho entendeu, os milagres não são contrários à Natureza, são contrários ao nosso conhecimento da Natureza.

Dada a inferioridade das explicações sobrenaturais e a incompletude do nosso conhecimento, os teístas apenas deveriam oferecer uma explicação sobrenatural de um fenómeno se conseguissem provar ser impossível encontrar uma explicação natural para o mesmo. Ou seja, para invalidar a prova científica da não-existência de Deus, os teístas têm de provar uma negativa universal: que nenhuma explicação natural para o fenómeno pode ser encontrada. E isso, acredito, é uma negativa universal que nenhum teísta será capaz de encontrar.

julho 23, 2004

Big Brother?

Microscopias
Preocupam-me mais os Little Brothers

julho 21, 2004

Fronteiras IV

Felizmente que muitos de nós concordam que excesso de certezas, abuso de preconceitos e intolerância aos outros que diferentes é mau e produz péssimos resultados. Mas não largues tudo. Escolhe com cuidado porque nem tudo é relativo, há ideias a serem defendidas e há quem não mereça confiança. Manter a mente aberta é bom mas que não ta caia ao chão por ser grande a janela.

julho 20, 2004

Não se pode provar uma negativa universal? (parte I)

(traduzido do artigo Can Science Prove that God Does Not Exist? de Theodore Schick, Jr. Free Inquiry magazine, Vol. 21, 1. )

"Não se pode provar uma negativa universal" é a resposta típica para afirmar que a Ciência não pode provar que Deus não existe. Uma negativa universal é uma afirmação que algo não existe em lado algum. Como não é possível examinar todo o Universo (segue o argumento) não se pode provar conclusivamente a não-existência de algo. No entanto, o princípio que não se pode provar uma negativa universal é uma negativa universal. Ele afirma que não existem provas de negativas universais. Mas se não há provas, então ninguém pode provar que não se pode provar negativas universais! E se ninguém pode provar que não se pode provar, então é logicamente admissível que se pode provar uma negativa universal. Assim, este princípio auto-refuta-se: se é verdadeiro, é falso.

De facto existem muitas negativas universais que foram provadas. Parmenides (há 2500 anos) afirmou que não podem existir contradições lógicas: não há solteiros casados, nenhum circulo é quadrado, e não existe o maior número porque estas noções são contraditórias. Elas violam a mais fundamental lei lógica: a lei da não-contradição (nada pode ter e não ter uma dada propriedade). Uma forma de provar uma negativa universal é provar que uma dada noção é contraditória (também se designa inconsistente). Para provar que Deus não existe, basta demonstrar que a concepção de Deus é inconsistente:
  • O teísmo tradicional define Deus como o ser supremo, do qual não se pode conceber maior, como Santo Agostinho disse. Sabemos que não existe um número supremo X - se existisse, o número 2^X era um número maior (contradição). Muitos acreditam que a noção de um ser supremo é análoga ao de um número supremo.
  • Outros (o cristianismo, por exemplo) afirmam que Deus é perfeitamente justo e misericordioso. Se é perfeitamente justo, todos terão o que merecem. Se é perfeitamente misericordioso, perdoará a todos. Mas não parece ser possível ser as duas coisas. Assim, esta noção pode ser inconsistente.

Estão são apenas algumas inconsistências encontradas nas definições tradicionais de Deus. [...] Os teístas afirmarão que se estas noções forem bem entendidas não existe contradição lógica. E se tiverem razão? Se for logicamente possível existir Deus? Será que isso implica que não se pode provar a inexistência de Deus? Não, para provar que algo não existe basta provar que é epistimologicamente desnecessário, ou seja, que esse algo não é necessário para provar nada. A Ciência tem provado a não-existência de vários conceitos desta forma, como o flogisto, o éter e o planeta Vulcão. As provas cientificas não são como as provas lógicas, não precisam estabelecer as suas conclusões para lá de qualquer dúvida. Basta que as suas conclusões estejam para lá de qualquer dúvida razoável, sendo justificação suficiente para lhes dar valor.

O flogisto, o éter e o planeta Vulcão são entidades teóricas postuladas para explicar certos fenómenos. O flogisto foi usado para explicar o calor, o éter para justificar a propagação da luz através do espaço, e Vulcão para acertar as perturbações da órbita de Mercúrio. A Ciência, desde então, mostrou que os respectivos fenómenos podem ser explicados sem invocar estes conceitos. Ao demonstrar a sua inutilidade, ficou provada a sua inexistência.

Deus é uma entidade teórica postulada pelos teístas para explicar diversos fenómenos, como a origem e o desenho do Universo ou a origem da vida. A Ciência moderna prossegue o seu caminho para explicar todos estes fenómenos sem a ajuda de Deus. Como Laplace disse ao Czar da Rússia: "não preciso dessa hipótese". Ao provar que Deus não é necessário para explicar nada, a Ciência mostra que há tanta razão para acreditar em Deus, como para acreditar no flogisto, no éter ou em Vulcão. [cont.]

julho 16, 2004

Ecos

Habituámo-nos ao convívio das máquinas até ao ponto de estruturarem a sociedade. Esta impressão de normalidade chega mesmo ao afecto (pelo carro, computador, telemóvel). Procuramos agora recheá-las de raciocínio e emoção mecânica. Mas o mundo da máquina é o do inorgânico: o padrão da repetição, da geometria do constante, da obstinação gelada do imutável. De facto, toda a evolução do mundo orgânico procurou afastar-se deste deserto. Vivemos rodeados por ecos de fracassos: vírus, bactérias, insectos.

julho 15, 2004

Pontos de vista

Serão as características intersecção casual de matéria e oportunidade aos olhos do observador? Se a alma de uma flor ou da Vénus de Milo estão em ti, onde se encontra a tua?

julho 13, 2004

Geração

Decidi procurar na Internet informação sobre massacres a civis pós-Holocausto. Sabia que haveria muitos mas não sabia que eram tantos. Deixo aqui uma lista - certamente incompleta - dos eventos que produziram a morte a mais de dez mil civis. Os números desta lista são aproximações muito grosseiras (e não necessariamente fiáveis) dos verdadeiros números que, por sua vez, são aproximações grosseiras da realidade das vidas que se perderam. Sinceramente não sei se o pior da tragédia é o mal que provoca ou a indiferença que gera.

Bolívia 1955-67 Conflito com a Guerrilha 200,000 mortos civis
Chile 1974 Execuções da Junta Militar 20,000 mortos civis
Colômbia 1949-62 Liberais vs. Conservadores 200,000 mortos civis
Colômbia 1970s-90s Governo vs. Guerrilha Comunista 120,000 mortos civis
Guatemala 1966-89 Governo vs. URNG 100,000 mortos civis
Nicarágua 1978-79 Guerra Civil 40,000 mortos civis
Peru 1981-89 Sendero Luminoso 20,000 mortos civis
Peru 19?? Comissão da Paz e Reconciliação 60,000 mortos civis
Egipto/Israel 1967-70 Guerra dos Seis Dias e pós-guerra 50,000 mortos civis
Síria 1981 Massacre pelo Governo da Irmandade islâmica de Hamah 10,000 mortos civis
Turquia 1984-89 Governo vs. Partido Trabalhista Curdo 10,000 mortos civis
Bangladesh 1971 Guerra civil, intervenção Indiana 1,000,000 mortos civis
Iraque 1960s-1980s Massacre dos Curdos 100,000 mortos civis
Iraque 1991 Guerra com EUA 100,000 mortos civis(?)
Iraque 2003/4 Guerra com EUA 10,000 mortos civis
Guerra Irão/Iraque 1980s 1,000,000 mortos civis
Índia 1946-48 Processo de Partição 800,000 mortos civis
Índia 1965 Índia vs. Paquistão 13,000 mortos civis
Afeganistão 1980s,90s Guerras continuas 1,000,000 mortos civis
Tadjiquistão 1992 Guerra Civil 60,000 mortos civis
Tchechénia 1990s Conflito com Rússia 30,000 mortos civis
Camboja 1975-78 Governo de Pol Pot 2,000,000 mortos civis
Camboja 1978-90 Invasão Vietname e guerra civil 20,000 mortos civis
China 1946-50 Guerra civil 5,000,000 mortos civis
China 1949-54 Reforma Agrária 4,500,000 mortos civis
China 1949-54 Supressão da contra-revolução 3,000,000 mortos civis
China 1965-75 Revolução Cultural 1,613,000 mortos civis
Indonésia 1965-66 Massacres relacionados com golpe de estado 500,000 mortos civis
Indonésia 1975-89 Anexação de Timor Leste 90,000 mortos civis
Sri Lanka 19??-hoje Conflito governo - Tigres Tamil 50,000 mortos civis
Coreias 1950-53 Guerra da Coreia 3,000,000 mortos civis
Laos 1960-73 Guerra Civil, conflito com Indónesia 12,000 mortos civis
Laos 1975-87 Governo vs Frente Libertação Nacional 30,000 mortos civis
Filipinas 1972-87 Governo vs. Movimento Muçulmano (MNLF, MILF) 20,000 mortos civis
Vietname 1945-54 Guerra da Independência com França 300,000 mortos civis
Vietname 1960-75 Guerra com EUA 1,200,000 mortos civis
Angola 1961-75 Guerra da Independência com Portugal 300,000 mortos civis
Angola 1980-88 Guerra civil 500,000 mortos civis
Algéria 1992-2002 Governo vs. FIS e GIA 100,000 mortos civis
Burundi 1972 Hutus vs. Governo 80,000 mortos civis
Burundi 1988 Hutus vs. Governo 200,000 mortos civis
Nigéria 1967-70 Guerra Civil 1,000,000 mortos civis
Ruanda 1956-65 Tutsis vs. Governo 102,000 mortos civis
Ruanda 1995 Hutu vs Tutsi 1,050,000 mortos civis
Somália 1990-93 Guerra civil 250,000 mortos civis
Sudão 1955-hoje Guerra Civil 1,900,000 mortos civis
Uganda 1971-78 Massacres Idi Amin 300,000 mortos civis
Uganda 1981-85 Massacres Governo Obote 300,000 mortos civis
Uganda 1981-89 Resistência Nacional vs. Governo 100,000 mortos civis
Congo 1960-64 Conflito de Independência(?) 100,000 mortos civis
Congo 1998-hoje Guerra civil 3,000,000 mortos civis
Jugoslávia 1990s Guerra civil 300,000 mortos civis

Principais fontes: [1,2]

julho 02, 2004

Uma Nova Viagem

Com a sonda Cassini-Huygens, temos a oportunidade de aprofundar o conhecimento sobre o sistema de Saturno. Uma das características especiais deste planeta gigante são os seus anéis. Três deles podem ser vistos da Terra, os anéis C, B e A (progressivamente mais distantes do planeta, como se vê na seguinte simulação do planeta com a posição correcta dos satélites às 18h30 de hoje). O espaço entre os anéis A e B é chamado de divisão de Cassini (um astrónomo Francês do século 17-18) cujas descobertas inspiraram o nome da sonda. Um buraco muito mais fino na camada exterior do anel A designa-se divisão de Encke (que também se observa nesta imagem).



Há muita informação sobre os anéis de Saturno mas conhece-se pouco das causas e efeitos de Saturno e dos seus satélites sobre a estrutura e estabilidade dos anéis (nestes últimos dias têm-se multiplicado imagens com extremo detalhe). Um curioso facto ocorre com o anel F (exterior ao anel A) que, devido à interacção de duas luas "pastoras", mantém uma pequena espessura, às quais deve também a sua estabilidade (ou assim se pensa). Na figura simulada é possível intuir o anel F a partir da posição dessas luas (Prometeu e Pandora).

Fronteiras III

Como ver a escuridão senão pela luz? Como descobrir o labirinto sem a esperança da saída? Como se saber feliz sem a memória do momento oposto? Dou valor aos cinzentos por lhes conhecer os extremos.