"Justiça Fiscal", JL Saldanha Sanches
Constitucionalizar um princípio é a forma contemporânea de tentar sacralizar e eternizar um valor considerado imperecível. Claro que já não é possível, e está longe dos diagramas de força que regem as sociedades actuais, a possibilidade de produzir uma nova versão dos Dez Mandamentos bíblicos, mesmo para fins a que hoje chamaríamos estritamente laicos. Não quer isto dizer que uma Constituição, tal como sucede com as nossas, não deva ter uma durabilidade mínima, pois a flexibilidade patológica constitui um forte elemento de deslegitimação.
A defesa dos direitos fundamentais, se for feita por meio de regras sujeitas a permanentes alterações, equivale a uma espécie de baluarte móvel, ou seja, uma contradição dos seus termos na defesa das garantias do sujeito passivo no Estado constitucional. A alteração essencial, feita por meio da ruptura com um anterior texto normativo, deverá caber ao trabalho do juiz ou, em termos mais amplos, da jurisprudência. Não temos valores jurídicos eternos e imutáveis e não podemos conceber princípios para todo o sempre, mas a mudança e construção de novas interpretações num texto constitucional são uma tarefa a realizar de forma comunitária pelos juristas e cidadãos, maxime pelos tribunais. (pg. 29)
As leis fiscais estão sempre sujeitas a um processo de discussão pública, uma vez que devem ser aprovadas pelo Parlamento, podendo a opinião pública facilmente reagir a movimentos perceptíveis de maior oneração fiscal quando o executivo se vê obrigado a aumentar impostos.
No entanto, para além destas grandes decisões perceptíveis (por exemplo, quando a taxa do IVA aumenta 2 pp) a lei fiscal está sempre cheia de um conjunto de pequenas excepções, de regimes especiais, de benefícios fiscais que, ainda que no seu cômputo final alterem profundamente a distribuição da carga tributária, escapam quase sempre à percepção da grande maioria dos contribuintes. São excepções que estilhaçam a lógica interna do sistema e os princípios de oneração, são um conjunto de «contranormas» que o contribuinte normal percebe mal, mas que lhe transmitem a noção (exacta) de que as leis fiscais são injustas.
Estas sistemáticas criações de nichos de privilégio mediante a acção de lobistas foram minuciosamente estudadas nos EUA onde a enorme complexidade do tax code tem sido explicada por uma intensíssima e permanente interacção entre legisladores e interesses particulares. (pg.43)
Os benefícios fiscais [isenções] são uma excepção à regra da tributação [...] A desigualdade de tratamento entre factos semelhantes com alguns excluídos de tributação exige uma justificação, sob pena de um regresso aos privilégios fiscais. Tal justificação pode ser de ordem económica ou social. [...] Em todos estes casos poderemos encontrar razões para a atribuição de um regime fiscal mais favorável, mas a multiplicações destas razões -- e a consequente multiplicação de benefícios fiscais (que depois de serem concedidos tendem a perpetuar-se independentemente de um juízo renovado sobre a sua real eficácia) -- é um dos problemas principais dos sistemas fiscais de hoje.
Numa lógica liberal que se opõe à intervenção do Estado na economia, a atribuição de benefícios fiscais não deverá existir, ou, pelo menos, deverá ser desempenhada por subsídios. Em relação às consequências financeiras, o custo do subsídio é o mesmo que a receita perdida em virtude do benefício fiscal, com a vantagem de ser mais transparente e de a sua atribuição dever ser decidida todos os anos, orçamento após orçamento. (pg.49)
Os impostos sobre os combustíveis são a negação de tudo aquilo que aprendemos sobre a justiça fiscal: aumentando o preço da gasolina ou do gasóleo atingem-se principalmente os contribuintes com menor capacidade contributiva, cidadãos estes que podem ser obrigados a mudar de comportamento -- abandonar o uso do automóvel -- quando o imposto se junta ao aumento do preço do produto-base. E, no entanto, tudo visto e ponderado, estes impostos são justos. Mas justos em que sentido?
Ao internalizar as externalidades negativas ligadas ao uso dos combustíveis fósseis, o imposto sobre os combustíveis amplifica um sinal que o mercado transmite de forma insuficiente: a necessidade de poupar energia por, nesta área, as flutuações do preço não conduzirem a uma situação de equilíbrio. Não conduzem, porque, a curto e médio prazo, os combustíveis fósseis são o método mais económico de produzir energia. Mas apenas a curto e médio prazo, e porque não se contabilizam os custos ambientais. [...] a inacção do Estado, com a ausência de políticas públicas sobre energias alternativas e a manutenção do petróleo para consumo interno a preços agradavelmente baixos, ainda que socialmente pareça justa, tem efeitos geopolíticos inaceitáveis [...] os argumentos ligados à eficiência económica e social desta tributação são tão fortes que se tornam um argumento de justiça. (pgs 69-71)
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