outubro 30, 2012

Tradições

Um ovo fertilizado não é uma pessoa. O adulto que resultou desse ovo é uma pessoa. O que aconteceu nesse intermédio? Existe um instante entre as duas anteriores afirmações em que se passou do estado de não-pessoa para pessoa? A resposta é simples: não. Procurar uma fronteira precisa neste assunto é uma missão equivocada. A noção de pessoa é gradual, não existe um conjunto suficiente e necessário de características objectivas que a determine. Resta-nos, assim, o consenso possível de uma definição. 


O consenso actual, nos países seculares, é firmado algures na segunda dezena de semanas de gravidez. Este é um período, antes da formação do sistema nervoso do feto, no qual é admissível a possibilidade de aborto. Deste modo, garante-se a prevenção da dor e a inexistência de um ser consciente (aliás, uma asserção ultra-conservadora para qualquer definição científica de consciência). Este prazo derivou do consenso possível entre especialistas de medicina, os profissionais com maior capacidade de se pronunciarem sobre o assunto.

A opinião católica, porém, funciona através de mecanismos de tradição, processos onde a razão presente e a evidência (contrária) têm pouco a dizer. Se existe uma política defendida pela Igreja sobre o assunto, é esta política que tem de ser promovida. É uma questão de autoridade e costume. Mas que tradição é essa? A Igreja nem sempre manteve a mesma opinião. Nos séculos entre Santo Agostinho e São Tomás de Aquino era considerado que o feto só recebia uma alma no momento em que se começasse a mover na barriga materna. Isto ocorre entre a 16ª e 22ª semana de gravidez (mais tarde que o limite para o aborto legal actual). Antes desse momento, o aborto não era considerado problemático.

As posições tomadas pela Igreja não foram indiferentes às discussões sobre a procriação. Para Aristóteles, o esperma («a semente do homem») era o princípio activo da geração humana, sendo que a mulher providenciava apenas a matéria passiva para a semente crescer. Muitos pensadores que seguiam esta explicação faziam a distinção entre vida formada e não-formada, aceitando que, à posteriori, a matéria não-formada seria animada por uma alma. Uma segunda teoria defendia que o esperma e o útero continham desde logo o pneuma, um elemento espiritual, que quando misturados produzia de imediato a alma do embrião. Esta explicação era defendida pelos Estóicos e por alguns cristãos. Uma terceira explicação, adoptada por Tertuliano, retirava o papel da mulher deste processo mas mantinha a tese da alma estar presente desde a concepção. Estas explicações filosóficas sobre a biologia da procriação influenciaram fortemente as discussões cristãs sobre o estatuto moral do embrião [1].

Em 1588, o Papa Sisto V defendeu a tese da alma existir a partir da concepção. Em 1591, apenas três anos depois, o Papa Gregório XIV revogou a bula anterior voltando à tese medieval da incorporação tardia da alma que só foi, por sua vez, revogada definitivamente em 1869, por Pio IX (na bula Apostolicae Sedis). A partir de Pio IX, juntando-se outras bulas na mesma direcção durante o Século XX, chegou-se à posição oficial e actual da Igreja [2]. Uma posição que, apesar de uma história mais antiga, tem 'apenas' 150 anos.

De qualquer forma, para a Igreja uma pessoa é alguém que detenha uma alma [3]. A tese corrente que a alma entra no momento da concepção, faz com que a Igreja equacione o aborto ao assassinato de uma pessoa. Assim, assumindo este pressuposto, é lógico que se pretenda impedir o aborto até a quem não é católico. Um assassino não deixa de o ser pelas crenças que defende. Seja ateu, seja religioso, se faz um aborto é responsável por um crime gravíssimo. O problema é que os católicos não se comportam desta forma, no seu dia-a-dia. Numa sociedade com uma tão grande taxa de crentes, perante tantos milhares de assassinatos de inocentes, o seu silêncio é ensurdecedor. Se o Estado financiasse o assassinato forçado de milhares de idosos por ano, esse seria um acto que a sociedade civil não suportaria. Porque não agem, então, os católicos? A minha explicação não é que um católico é indiferente ao assassinato de inocentes (uma afirmação ridícula, como é ridícula a afirmação que um ateu não possui juízo ético). A minha explicação é que o católico típico -- incluído a maioria da hierarquia da Igreja -- sabe, mesmo que inconscientemente, que um aborto nos prazos legais, de facto, não é o mesmo que assassinar uma pessoa. Um facto que se reflecte no comportamento dos crentes, apesar de toda a regulamentação eclesiástica em sentido contrário.

Mede-se melhor alguém, não pelas crenças que afirma ter, mas pelas acções que toma ou omite.

Refs:

[1] Smith - A Christian Response to the New Genetics (pp. 112-113)
[2] The History of Abortion in the Catholic Church, http://www.catholicsforchoice.org/pubs/cfc_archive/articles/TheHistoryofAbortion.asp
[3] Catecismo da Igreja Católica, Parte III.1.1.1

outubro 26, 2012

Passado, Presente, Futuro

"As an island in space, the world could not rely on imports from elsewhere; nevertheless, it was already heavily dependent upon imports from elsewhen. [...] The human species, through technological progress, had made itself more than ninety percent dependent on phantom carrying capacity – a term we must now define. Phantom carrying capacity means either the illusory or the extremely precarious capacity of an environment to support a given life form or a given way of living. It can be quantitatively expressed as that portion of a population that cannot be permanently supported when temporarily available resources become unavailable." Overshoot, William R. Catton

outubro 24, 2012

Lei de von Liebig

"[W]e need to step outside the usual economic or political frames of thought, go back two-thirds of a century before the 1929 crash, and reexamine for its profound human relevance a principle of agricultural chemistry formulated in 1863 by a German scientist, Justus von Liebig. That principle set forth with great clarity the concept of the “limiting factor” [...] Carrying capacity is limited not just by food supply, but potentially by any substance or circumstance that is indispensable but inadequate. The fundamental principle is this: whatever necessity is least abundantly available (relative to per capita requirements) sets an environment’s carrying capacity.

While there is no way to repeal this principle, which is known as “the law of the minimum,” or Liebig's law, there is a way to make its application less restrictive. People living in an environment where carrying capacity is limited by a shortage of one essential resource can develop exchange relationships with residents of another area that happens to be blessed with a surplus of that resource but happens to lack some other resource that is plentiful where the first one was scarce.

Trade does not repeal Liebig’s law. Only by knowing Liebig’s law, however, can we see clearly what trade does do, in ecological terms. Trade enlarges the scope of application of the law of the minimum. The composite carrying capacity of two or more areas with different resource configurations can be greater than the sum of their separate carrying capacities. ...] A good many of the events of human history need to be seen as efforts to implement the principle of scope enlargement." Overshoot, William R. Catton

outubro 18, 2012

Dilbert

Alguns cartoons do Dilbert relativos a questões estatísticas:




outubro 04, 2012

Overton

A janela de Overton é um conceito da ciência política, introduzido por Joseph P. Overton, que descreve um facto social inescapável: os conceitos considerados aceitáveis para serem discutidos publicamente são muito limitados. Esta janela altera-se com o tempo, reciclando, esquecendo, introduzindo termos e ideias, soluções. Por exemplo, no século XIX era possível falar publicamente de políticas raciais ou de eugenia, mas agora seria equivalente a um suicídio político (ao ponto do corrector automático não conhecer a palavra eugenia e sugerir-me 'Eugénia'). Como exemplo inverso temos o casamento homossexual, algo aceitável para discussão hoje em dia, mas mesmo o mais racional, coerente e influente dos pensadores liberais de há 100 anos jamais ousaria discutir o tema em público. Não é certo que a janela se alargue com os anos, mesmo imaginando possível uma qualquer métrica. A única certeza empírica é a janela ser limitada. 

O transformar da opinião pública para que certas ideias passem de impensáveis para radicais, de radicais para aceitáveis, e finalmente de aceitáveis para essenciais, é um papel social da maior importância. É um caminho percorrido por inúmeras pessoas ao longo dos séculos, desde filósofos e políticos a outros agentes sociais. Os direitos humanos, a igualdade das mulheres, a abolição, a separação da Igreja e do Estado, a liberdade de expressão, o trabalho infantil, a independência da Justiça, todos elas consideradas ideias impensáveis algures no passado. Devemos muito a todos os que lutaram e sofreram as consequências para nos legar estas subtis mas críticas heranças. 

A minha opinião é que existe um problema muitíssimo grave com a actual janela de Overton. A civilização globalizada caminha para uma mudança radical, talvez inédita, mas não é possível abordar certos tipos de solução por políticos e outras figuras públicas que prezem a sua reputação. Esta mudança deriva de estarmos a atingir uma série de limites físicos do nosso planeta. Limites energéticos, sobre-população, o colapso de um sistema financeiro de natureza exponencial, uma pressão intolerável sobre o ecossistema. O tema do ecossistema é abordável mas não o é um certo tipo de raciocínio que aponta à sua resolução. Não é admissível explicitar a ligação integral entre o ecossistema planetário e a economia global. Não é possível admitir que o crescimento -- actualmente um conceito sacralizado -- possa ser negativo à economia e à sociedade, que é possível pensar políticas baseadas na estabilização da produção global (a steady-state economics) e não no crescimento infinito. Igualmente, não pertence à janela de Overton o constatar que todas estas questões estão relacionadas, e que os problemas económicos do Ocidente podem ser meros sintomas iniciais dos limites que estão a ser atingidos. 

Um exemplo particularmente difícil: será inevitável discutir a limitação do número de carros privados existentes. Estes são responsáveis pela maior parte dos cerca de 80% do consumo de petróleo mundial que é dedicado aos transportes rodoviários. A médio prazo (talvez 10, talvez 20 anos) este consumo crescente colocará em perigo o uso do petróleo (de extracção barata) para uma actividade à qual não existe alternativa: a aviação. Mas que político arriscaria informar a população que será preciso mudar a forma de nos deslocarmos para acomodar uma diminuição progressiva e a eventual proibição do uso de automóveis daqui a uma geração? A resposta é simples: ninguém. Este é um tipo de discussão que está totalmente fora da janela de Overton. O perigo é que se, e quando, este assunto entrar na discussão pública, a maior parte do combustível barato disponível estará já demasiado perto da exaustão. A partir daí o combustível da aviação ficará dependente de fontes fósseis muito mais caras, o que implicará o colapso do mercado aéreo para níveis de décadas atrás, pelo preço que os bilhetes atingirão para acomodar o preço do combustível. Poderá isto não acontecer? É possível. É possível que ocorra algum desenvolvimento tecnológico -- que os últimos 50 anos de investimento das companhias petrolíferas foram incapazes de conseguir -- e nos inundem de algum novo tipo de petróleo economicamente competitivo*. Mas não é provável. E no entanto, a probabilidade deste evento ocorrer é, literalmente, indiscutível.

* O pico de produção de petróleo convencional ocorreu por volta de 2006. [World Energy Outlook 2010, Key Graphs, p.7]

outubro 01, 2012


  • João Neto: Do you think math concepts exist independently of persons (aka, mathematical platonism)?
  • Alexander Nikitin: Define 'exist'. --- 
  • JN: Well, I overload the word 'exist' with two meanings: (i) existence independently of persons (let's call it exist-1) and, (ii) existence due to persons (exist-2). It's the separation of Maps and the Territory. 
  • AN: You can argue that only mind exist. Everything else are just ideas in your mind. Then you have an idea of natural numbers in your head. And you have an idea of a set of axioms and deduction rules that define your space of natural numbers. Then you start doing different things with your natural numbers following the rules and you find that the space has a structure and properties that depend on those axioms and rules only and nothing else in your mind. Your mind can do whatever it wants. It can have any other ideas, feelings and states, but whenever it follows the axioms and rules it always gets the same results. Does that mean that there is something that exists independently of your mind? 
  • JN:  But there is evidence against solipsism: we have lots of data from our senses and tech extensions. And my mind cannot do whatever it wants, especially when I'm driving :-) We are more than one human, why would one single mind be special? And if we assume two or more minds (a belief that literally every one follows) then how could we explain the coincidence of sense data? The belief that 'only mind exist' does not help us at all, it dissolves everything and give us nothing. 
  • AN: If you believe that the 'real' world exists and math is just an artifact of human brain activity. Then notice several things: (1) You can define a mathematical system as purely abstract and symbolical without any attempts to model anything 'real'. You can even ask a computer to generate a random set of symbols, axioms and rules for you to exclude any 'subconscious' mapping to anything real; (2) You can give that math system to any other people and/or computers and notice that if they follow the rules they always get the same results regardless of the properties of their minds; (3) If you eventually manage to map your system to something 'real' you will notice another strange thing: the results of physical experiments will always follow predictions derived from the system once the mapping has been established, but it NEVER work in the opposite direction - physical results NEVER disprove any conclusions derived from the axioms and rules of the math system. They can prove that the mapping was wrong, but they can't 'bend' the 'truths' of the math system. As we see math is self-sufficient. Substrate independent. And physics always follows math. Then what is more 'real'? 
  • JN: The first and second point also work for board games. And games can be formalized as math objects. However, defending that, say, Chess exist-0 is a very strange assertion for me. I don't see the relevance of the third point. Some math mappings are adequate to formalize scientific models (since there are infinite mathematical models, only a vanishing part of them are really useful). And, sure, enough counter-evidence can cancel the previous adequacy between model and data. So what? Why would we want to use data to bend Math? We just try to find or create another Math model that does the trick. They are tools just like anything else. We use many maps/models. We could imagine a spectrum from totally objective to totally subjective. Humans developed a discipline to deal with those at the objective extreme of that spectrum and called it Math (Physics, which is just another family of models, is a close neighbor). 
  • AN: The third point is important because it tells us that math is not just a map. It has predictive power. A map doesn't give you more information than you already know from your 'real' data. It shows you only that part of the territory which you already have experienced. Once you get mathematical model you instantly know everything about your territory. All human engineering is based on this idea. Every day we build bridges, planes, skyscrapers - 'real' objects that never existed before - and we can do it successfully because we rely on the empirical fact that once we get the math right we can be sure that the 'real' system's behaviour will follow the math. Our experience tells us that the 'real' world is not random. It follows certain rules. That means that the rules exist. The rules are abstract concepts they are not a part of the physical world because they define it. So if you believe that the world is not random then you should accept that abstract concepts can exist independently of anything in the 'real' world. I asked you to define 'exist' in the beginning because abstract concepts don't exist in the same sense as 'real' things. We can not put them in any specific place and point in time. They exist outside of space-time. I think I was not clear from the beginning. My view is not just that abstract mathematical objects exist. My belief is that mathematics is the only thing that exists. Our 'real' world is just one of all possible mathematical systems that has 'self-aware' objects that precept their environment as 'real'. That's all. 
  • JN: When you say that the fundamental basis is Math, the only thing that exists, and outside space-time, you are putting yourself into a position that cannot be settled by evidence. Which is not unreasonable since we are talking metaphysics. I recently already read similar arguments from people like Bill Taylor, Massimo Pigliucci or Steve Landsburg (all quite clever chaps). I think we cannot possible breach the abyss between the Territory and the Map (for me, we are entirely Map denizens). I just don't like positions which are 100% argument and 0% evidence. So, I try to minimize my own 100% argument beliefs: I don't assume anything from the Territory except that it generates events. And that's because we are able to measure those events (these are partial measures due to the limitations of our sense apparatus). These events, as you said, do have some regularities that we adapt ourselves to them by customs and culture, and formalize some into scientific laws. Why there are regularities? I don't know. Nobody knows (anyway, as far as we know people would be impossible in a more random universe). It's a bit like Hume's guillotine for ethics, there's an ontological guillotine between existence-0 and existence-1. I would bet that no one will ever cross it (in fact, from my position, that does not even make sense). Now, when you say: "Our experience tells us that the 'real' world is not random. It follows certain rules. That means that the rules exist." I think you are falling into Whitehead's Fallacy of Misplaced Concreteness (aka as ET Jayne's Mind Projection Fallacy). Rules imho only exist-1 in our minds. Perhaps using a less objective example, I can explain it better: humans share lots of cognitive bias. We can extract rules from well-made psychological studies. But we don't assume that these rules exist outside its scientific context. For me, the same happens with electrons, QM, etc. I see some wisdom in the "Shut Up and Calculate" attitude. In this case, we can only appreciate each other arguments. At the end of the day, we are confronting aesthetic positions not truly empirical ones.