janeiro 03, 2012

Esvaziamento

O livre-arbítrio é um conceito filosófica e cientificamente estéril. Considerando qualquer situação passada, se repetíssemos o mesmo estado do mundo, agiríamos sempre da mesma forma. A evidência existente aponta de forma esmagadora para esta possibilidade. A não ser que aceitemos uma perspectiva dualista - e.g., a existência de uma alma imaterial - não há fundamentos para afirmar que as mesmas condições poderiam dar lugar a decisões diferentes. E actualmente, considera-se o dualismo como um conceito epistemologicamente inútil, tal como os deuses, a referida alma, o vitalismo ou o elã vital.

É comum, nesta temática, referir o problema do determinismo como ameaça ao livre-arbítrio. Por isso, os seus defensores tentam minar a afirmação do determinismo, levantando dúvidas e argumentos à sua existência mais ou menos relevantes. Os dois lados podem concordar num ponto: nunca teremos a certeza que o mundo é determinista. A noção de certeza é uma assimptota, um ideal ao qual apontamos como objectivo mas que não chegamos a alcançar. Nunca teremos a certeza sobre um certo X mas podemos, com esforço e método, chegar a um ponto ao qual afirmamos X muito para lá da dúvida razoável. Este tipo de certeza ocorre no corpo de conhecimento de disciplinas como a física, a química ou a biologia. E a maioria desse conhecimento aponta para um mundo determinista. Os poucos casos na teoria clássica que parecem indeterministas, como as singularidades nuas entre outras situações patológicas, estão tão afastadas do nosso universo local (assumindo que realmente existem), são tão pouco relevantes no nosso dia-a-dia, que não encerram força argumentativa na discussão da cognição humana. Situações potencialmente locais, como o choque simultâneo de três corpos, se bem que não deterministas no contexto clássico, são eventos de probabilidade negligenciável (correspondem a conjuntos de eventos de medida nula).

O último reduto de indeterminismo parece ser a teoria quântica. Não na dinâmica resultante das suas equações, que é totalmente determinista, mas no acto de interferência ou observação. A interpretação de Copenhaga é manifestamente não determinista mas admiti-la levanta demasiados problemas sendo alvo de muita controvérsia desde o início da sua formulação. Já a interpretação de muitos mundos (many-worlds) defende que nada de mais acontece para lá da dinâmica determinista da equação de Schrödinger. Para explicar o aparente não-determinismo resultante do acto de observação, esta interpretação refere apenas que nós vivemos apenas em um de múltiplos ramos da dinâmica quântica. É deixado intocado o determinismo que já se encontrava nas equações, sacrificando para isso a nossa capacidade última de observação, uma perspectiva menos antropocêntrica e mais racional que a interpretação de Copenhaga. Mas, mesmo assumindo a interpretação de Copenhaga, é difícil imaginar como um evento não-determinista no mundo sub-atómico possa resgatar um conceito tantos níveis de abstracção acima como é o processo de decisão de uma mente humana (ou seja, como o arbítrio quântico se transforma em arbítrio humano?).

Há também quem argumente de acordo com a ideia que o mundo não pode ser determinista porque isso implicaria o colapso das noções de liberdade e de responsabilidade individual. Mas esta linha argumentativa é um non sequitur. O mundo é o que é. Uma ameaça à civilização, por mais grave ou iminente que seja, não tem qualquer efeito sobre a natureza do mundo externo. E, de qualquer forma, estes importantes conceitos não precisam ser abandonados:
  • A liberdade é a possibilidade de termos disponíveis mais escolhas e de agirmos de acordo com a nossa escolha preferencial. Isso não depende do mundo ser determinista: uma pessoa tem opções e age segundo elas, seja o processo de decisão determinista ou não (aliás, um processo demasiado não determinista seria, este sim, uma ameaça a regras sociais estáveis);
  • A responsabilidade é um conceito social. Ela é julgada moral e socialmente de acordo com as regras da sociedade em questão. E mais uma vez, isso não depende da natureza ontológica do mundo externo. Depende sim dos diversos modelos - sociais, científicos, éticos, religiosos - que a sociedade partilha e utiliza no seu dia-a-dia. É natural que novo conhecimento seja incorporado na sociedade e altere a sua perspectiva, como a moderna noção de inimputabilidade de certos doentes mentais. Mas, em última análise, as sociedades têm de ser capazes de manter um mecanismo coerente e sustentável de responsabilidade individual, qualquer que seja o conhecimento adquirido. A justiça, tradicionalmente o corpo social que formaliza e gere conflitos de responsabilidade, é um corpo independente. Ela recebe ajuda da ética, da ciência e da lógica, mas não depende delas para se fundar e funcionar.
Temos cada vez melhores modelos sobre o mundo, o cérebro humano e a forma como a mente funciona e interage. Cada vez mais parecem vazias ou incoerentes noções como o livre-arbítrio e o não-determinismo. Cada vez mais as discussões filosóficas nestes temas se parecem com as discussões sobre anjos ou almas da teologia antiga. Este é apenas mais um campo onde as discussões foram esvaziadas de significado pelo progresso do conhecimento humano.

Sem comentários: