janeiro 30, 2006

Temperança

Spleen gosta de jardins. Queimados. Por isso, de tempos a tempos (até porque possui a perfeita noção que uma necessidade ou prazer reiterado e alimentado sem restrições consome o produto mais depressa que a capacidade em repô-lo), pede a Dabila para incendiar com precisão geométrica um desses parques de cidade. Esta tarefa é mais complicada do que parece, pois um jardim é uma intersecção de caminhos não inflamáveis por entre um conjunto de árvores mais ou menos dispersas. Para além disso, não é fácil encontrar um hotel de cinco estrelas com, pelo menos, um décimo andar e uma boa vista para o espectáculo que ele a ele mesmo proporciona. Não há jantares grátis, mas sempre se podem fazer com estilo.

janeiro 26, 2006

Arrasto

O comportamento das massas é o diluir de muitos indivíduos numa sopa de reacções infantis. O sentimento pensado, o pesar das opções, o controlar da pulsão substituídos pela euforia espontânea, pelo querer do desejo imediato, pela frustração que leva à violência. Só que uma multidão não é uma criança. Na criança esse excesso é o necessário no ajuste dela ao mundo. Na multidão - seja para ajustar ou não o mundo - cada anseio satisfeito facilmente se transforma num arrastar de vidas por saldar.

janeiro 24, 2006

Custo


Que parte és na imagem dos outros? Que diferença fazes na multidão? O que sobra após arrancar a mistura de mundo que nos compôs?

janeiro 23, 2006

Transição

Das partes intactas exposto um padrão geométrico. Dos fluidos saídos um mapa desenhado, um final imagem abstracta de um princípio. A emergência é um conceito atractor da atenção de diversas áreas do conhecimento. Será possível obter mais que a soma das partes a partir da interacção dessas mesmas partes? Será o fluxo interno de um sistema responsável por propriedades relevantes e não triviais? Ou será apenas mais um assunto que, depois do superficial das coisas novas, cairá em desuso por incapacidade de criar ferramentas úteis? O Doutor Spleen, apesar de não possuir motivados interesses por estas questões, entende (tanto metafísica como empiricamente) que o desagregar de um homem é um acto unidireccional na produção de um «não-homem», por muito cirúrgico que seja o algoritmo usado.

janeiro 19, 2006

Arete

Arete é o conceito mais importante da ética antiga. É traduzido por virtude mas também por excelência. É um substantivo abstracto que relaciona a propriedade de tudo o que é bom no seu contexto: a coragem como virtude do guerreiro, a excelência do fabrico de uma espada, a virtude intelectual do sábio. Ao tentar explicar este conceito para os dias de hoje deparamo-nos não só com um problema de tradução mas de diferenças conceptuais entre a antiga Grécia e o Ocidente moderno sobre como agrupar características distintas. Há palavras que não se dão bem com sinónimos, há culturas que nem por isso se entendem e há passados que podem sempre mudar.

janeiro 17, 2006

Conformidade

Quando desviamos as fronteiras do normal e do inaceitável, muitos que viviam nessa difusa região entre ambos (os desvios socialmente tolerados) são obrigados a mudar não tanto o comportamento mas a expressão desse comportamento. Raramente o aumento das máscaras que temos de usar é bom sinal de alguma coisa. E quanto mais se diminui a nação da normalidade - quer por devoção, por ignorância, por culpa - mais se acumula um peso que a todos nos torna mais distantes.

janeiro 16, 2006

Consequências

Os quatro, calados, no restaurante. São três da manhã e encontram-se cercados de mesas a aturar cadeiras invertidas. No balcão, uma mão numa toalha molhada e outra num copo de vinho várias vezes enchido, o gerente espera em silêncio pelo fim daquela angustia semanal. Spleen não gosta de barulho enquanto janta (almoça?) (o Doutor Spleen não gosta de muita coisa, é certo, e este facto deixa-nos com a esperança de conseguir descrever aqui, no decorrer dos meses, o conteúdo selecto dessa lista). Dabila cometeu o desacerto de encomendar arroz de marisco não descascado. Agora vê-se de alicate na mão e a pensar se arrisca o número de decibéis para forçar a carapaça de um crustáceo. Kong sénior (que engole, eficaz, duas doses de bolonhesa) pensa no efeito dominó das pequenas decisões.

janeiro 11, 2006

TVI dixit

Calvin and Hobbes (c) Bill Waterson
(c) Bill Waterson

janeiro 10, 2006

Cores

A eterna luta relatada nas mitologias não é entre o Bem e o Mal, é entre heresias e fanatismos, entre o desejo de diversificar e o desejo de uniformizar. Uma batalha nem sempre silenciosa de infecções opostas: a diversidade e a homogeneidade, a anarquia e a tirania, máquinas brancas e negras alimentadas a cinzentos.

janeiro 09, 2006

Exactidão

O Doutor Spleen não só gosta de súplicas desesperadas como detesta sentimentos de esperança crédulos. Uma vítima apenas atinge a plenitude do seu papel se perceber a irreversibilidade da sua posição. De que vale a preparação cénica do contexto, a sequência de eventos que militarmente prepara, se a vítima insiste em argumentar a um qualquer arrependimento da sua parte, à suplica por um sentimento de piedade? Esta insistência irracional na ideia de salvação, esta crença não suportada na redenção de última hora do transgressor retira-lhe algum do prazer deste processo. Por isso, Spleen detesta optimistas e pessimistas (que não possuem diferenças essenciais no que toca a distorcer as coisas) e procura, com afinco e por vezes com exagerado esforço, um verdadeiro realista.

janeiro 05, 2006

Divisória

É na fronteira que reside o fascínio. Não é a consumação mas a sua expectativa, não é a chegada mas o não saber do caminho, não a certeza da vitória mas a mútua hipótese da derrota. O momento exangue após o acto é o anseio que nos avança, tudo o resto, passado, futuro, só regiões que o definem.

janeiro 03, 2006

Aritmética e Reflexos

Spleen olha-se ao espelho. Cada vez que nele pára mais que o infinitésimo banal para aparar a barba ou retocar qualquer desvio de aparência, vê-se como um homem metade eremita, metade conquistador e metade negligente (na aritmética da personalidade, qualquer soma finita de metades dá sempre mais ou menos um). Spleen sabe que no espelho, com suficiente esforço ou abandono, se encontram demasiadas máscaras a não ser que uma espessa camada de ignorância ou imbecilidade (as subtis matizes de diferenças entre estes dois conceitos quase - por algumas vezes, quando a metade eremita estava mais forte - fizeram-no iniciar uma carreira de romancista russo) impeça qualquer possibilidade de limpar a maquilhagem de um rosto. Isso apenas revela que o espelho é o canivete suíço dos problemas mentais.