setembro 26, 2005

Dúvida

[Crátilo e Sócrates conversam enquanto Platão preenche o seu bloco de notas. Chove um pouco mas ninguém repara.]

Sócrates: Então até outro dia, meu amigo. Quando voltares hás-de dar-me uma lição. Mas no presente, vai ao campo, como pretendes, e Hermógenes dir-te-á o caminho.
Crátilo: Muito bem, Sócrates; eu espero, porém, que continues a pensar nestes assuntos.

[Dito isto, Platão vendo a conversa terminada, guarda as suas anotações e sai. Crátilo porém, volta para trás sem que Platão o perceba]

Crátilo: O teu aluno é um bocado chato...
Sócrates: Pois... escrevinha tudo quando tem quem o oiça.
C: Sócrates, tenho uma última pergunta a fazer-te.
S: Não será a última, se os deuses o permitirem.
C: O teu método connosco é já conhecido. Quando afirmamos algo, perguntas quais os conceitos de base nos quais partimos para defender o que dissemos.
S: Sim.
C: Depois, de forma algo desesperante devo dizer, questionas a definição que nós damos a esses conceitos. E através do teu raciocínio e análise fazei-nos aceitar que a definição tem excepções ou falhas.
S: E até contradições.
C: Concedo que sim. Mas em muitos casos, como na percepção, sabemos identificar objectos e classificá-los de forma segura mesmo que não saibamos exactamente qual a definição que a justifica.
S: Continua...
C: Por exemplo, posso olhar para o barco que me levará pelo Egeu e dizer que não está vivo, apesar de não saber qual a fronteira entre os vivos e os não-vivos. Se levado ao extremo, o teu método diria que eu não posso dizer que o barco é algo inanimado enquanto não souber responder à pergunta muito mais complexa da vida. Não estarás a prejudicar o esforço filosófico com este teu método?
S: Amigo, dás um sentido às minhas perguntas mais forte do que lhe é devido. Não é isso que defendo, aliás isso é inconsistente com a minha procura da verdade. O que tendo transmitir é que não sabendo exactamente o que um conceito é, temos pelo menos dois problemas que não devemos nunca esquecer.
C: Quais são?
S: Primeiro, não podemos afirmar que um dado conceito universal tem esta ou aquela propriedade particular. Por exemplo, não sabendo o que é a Justiça, poderemos saber se ela é inata ao Homem? Terá ela um carácter divino? Pode uma lei violar a Ética?
C: E a segunda?
S: A segunda refere os casos que residem na fronteira entre o conceito e o não-conceito. Como avaliar a justeza da decisão sobre um assunto complexo, se não se entender com clareza o princípio que lhe preside?
C: Dá-me um exemplo.
S: Pode uma esposa ser obrigada a testemunhar contra o marido? Posso matar um feto por nascer? É covardia recuar um exército para melhorar a sua posição? Devo seguir a ordem de um general enlouquecido?
C: Mas terá tudo uma essência? Terá a Justiça, a noção de Vida ou a acção dos deuses uma essência que lhes define e delimita? Não poderemos agir sobre as coisas sem as descobrir? Ficaremos imobilizados na nossa decisão, se assim for?
S: Não serei eu a responder-te, não sei nada mais que nada. Repito-te: esta minha procura apenas ilumina certas perguntas muitas vezes suspensas nessa pretensão de sabedoria.
C: Expressas, enfim e apenas, um desejo de entendimento.
S: Exactamente, meu caro Crátilo.
C: Amigo, agradeço-te e fico em dívida: levo um pouco mais para pensar.
S: Atenção! É Platão que se aproxima.

[Os dois despedem-se e Crátilo sai, rápido, pelas traseiras. Platão entra e discutem, os dois, o orçamento dos papiros e da tinta para escrita.]

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