abril 29, 2010

Controlo

Uma religião ou uma ideologia são mecanismos de pacificação mental. Ao dispor de uma estrutura explicativa seja do mundo externo, social ou íntimo, protege o crente de um oceano de questões e decisões. Ao querer impossível a pergunta, ao tornar desnecessário a opção, promete aos seus uma vivência simplificada. Este sistema é protegido quer por mecanismos de censura (o index que proíbe textos e imagens de outras perspectivas) quer por auto-censura (graças à excepcional facilidade que temos em isolar certas crenças de qualquer introspecção crítica). Uma sociedade deste tipo usa livremente os media e as escolas como instrumentos de uniformização bem como a polícia e as próprias pessoas como sistema imunitário à diferença, à opinião e à acção não formatada. O inimigo não se encontra necessariamente fora nem dentro, é imanente em tudo o que se faz e pensa e, assim, tudo o que se faz e pensa é potencialmente gerador de culpa, um crime ou pecado. Para a manutenção desta dinâmica viciada, uma das questões essenciais é manter isolado o mecanismo mental da dúvida. A acção em vez da introspecção, a repetição em vez do original, tudo são processos para fixar automatismos e afogar o único de cada pessoa. Felizmente, não é fácil extrair a dúvida totalmente de uma pessoa sem a reduzir a uma sombra. Mesmo que seja possível construir uma sociedade de sombras ela dificilmente se mantém, o nosso passado genético não é o da colmeia. E quanto mais reprimida uma sociedade for, quanto maior o esforço para mantê-la controlada, mais exposta se torna à dúvida que pretende destruir.

abril 26, 2010

Aproximação

Quando perante um problema maior se cria um problema menor para o resolver, ficamos mais perto da solução.

abril 23, 2010

Promessas

O acreditar num principio cósmico indiferente não se encontra muito distante do aceitar uma realidade coerente e objectiva. O primeiro crê numa fonte do Universo (cuja origem é ininteligível) e que, eventualmente, o mantém estável; o segundo crê num início sem causa aparente (o Big-Bang) e vê o Universo como um pano de fundo há muito estabilizado. Existe, claro, uma diferença crucial: há evidências do segundo enquanto o primeiro é imune a qualquer análise. O primeiro é o príncipio das religiões védicas e helenistas ou ainda do deus de Spinoza (o ser cósmico que se confunde com o próprio universo), o segundo o pano de fundo do método científico. Mas enquanto a adopção do segundo resultou na criação de conhecimento fundamental para o progresso social, o primeiro anexou em seu redor uma corte de conceitos artificiais progressivamente mais barrocos: o principio tornou-se pessoal (nas personalidades de deuses e demónios), preocupado com micro-gestão (o karma, a predestinação, os juízos finais) e com espírito de pai natal (uma alma eterna, o paraíso, a reencarnação). Este evoluir é, provavelmente, reflexo do carácter irracional e infantil do ser humano, da nossa fragilidade, do curto tempo, poder e opções que dispomos. Mas também é devido à maior antiguidade que o primeiro conceito tem em relação ao segundo. No ecossistema mental da humanidade é natural que as propostas mais aliciantes às ânsias e aos desejos imediatos das pessoas tenham maior probabilidade de sucesso. Uma resposta fácil e final é mais propícia a manter-se do que uma que só promete dificuldades. E a Ciência é nisto implacável: não há nada lá fora que seja simpático à humanidade; tudo o que podemos obter está no verniz deste planeta preso e alimentado por uma estrela convulsiva; não há sentido em nada excepto naquilo por nós construído; não há um destino excepto a extinção; não há respostas finais excepto as impostas pela autoridade; o conhecimento não é fácil nem revelado mas apenas resultado de suor, de muitos erros, de recuos pesadíssimos e, demasiadas vezes, à custa de sangue. Nosso.

abril 20, 2010

Leis

As leis da natureza formam uma restrição ao comportamento possível. A moral individual também. Mas a definição desta é difusa, uma trajectória na trajectória pessoal que cada um é. Os fundamentos que a moldam podem vir da experimentação, da razão ética, do mito, da ideologia. Em qualquer dos casos as variações são ilimitadas mas, excepto na razão, elas não são só subtis.

abril 13, 2010

Conquista

Há uma ideia que, espero, conquistará o mundo: somos todos iguais no sentido em que devemos ter os mesmo direitos, obrigações e oportunidades mas somos diferentes nas capacidades, nas crenças e nos gostos. Esta ideia, um pouco como a evolução, é um diluente universal, dissolvendo preconceitos opressores de minorias e desviantes. Ninguém é especial ou escolhido, nem povos, nem pessoas nem deuses. Não há nações melhores que outras, não há gostos nem crenças especiais, vícios ou virtudes absolutas, ninguém tem a última palavra nem há dogmas finais. Resta, a cada um, a liberdade possível e a responsabilidade das acções que comete. Nisto, a comunidade é apenas um meio (e nesse apenas, tanto) e não um fim. Um facilitador e não um normalizador. Um palco para o escrutínio público produzir conhecimento e não uma muralha para defender crenças arbitrárias. Um amigo exigente, não um pai.

abril 08, 2010

Conflito

"[...] my disbelief in determinism must be contained in the set of factors which determine my behavior; one of the conditions for fulfilling the prearranged pattern is that I should not believe it is prearranged.. Destiny can only have its way by forcing me to disbelieve in it. Thus the very concept of determinism implies a split between thinking and doing; it condemns man to live in a world where the rules of conduct are based on As-Ifs and the rules of logic on Becauses. This paradox is not confined to scientific determinism; the Moslem, living in a world of religious determinism, displays the same mental split. Though he believes, in the words of the Koran, that «every man's destiny is fastened on his neck», yet he curses his enemy, and himself when he blunders, as if all were masters of their choice. [...] Destiny versus freedom (or explanation vs volition) is an eternal duality in man's mental structure. Both concepts are derived from fundamental instincts, though in different periods they are expressed in different forms.

The idea of destiny responds to the need to find some organizing principle, a universal order behind the threatening chaos of the natural world. Its instinctual root is probably the feeling of insecurity, a cosmic anxiety, which craves for reassurance by «explanation», that is, the reduction of the strange and threatening to the familiar. In primitive religion this is achieved by explaining the forces of nature through animism and personification. [...] About 1600 the character of destiny underwent a change. A new method of explanation arose in the measurements of the quantitative aspects of things and the formulation of their rules of interaction. Many phenomena which had appeared different in kind proved to be explainable in differences of degree. The success of this method meant that the organizing principle of the universe could now be more satisfactorily explained in therm of these quantities and relations. Deity, whose human passions had gradually decreased with increasing wisdom, now became entirely de-personalized. The idea of enforced order, «fastened around man's neck» remained untouched, but the seat of the organizing power had been shifted. The gods had been supermen, extrapolations of an ascending scale; atoms and electrons were subhuman, extrapolation of a descending scale. Destiny which had operated from above now operated from below." Arthur Koestler, The Yogi & The Commissar II.

abril 05, 2010

Evolução

As crianças são muito atentas quando há alguma diferença de tratamento ou de situação (por exemplo, se uma tem um brinquedo, outra quer um igual; se a janela do carro está aberta, a criança, lá atrás, quer também abrir a sua). À primeira vista pode parecer inveja ainda não domesticada, mas creio que se trata de um primeiro esforço de ética e justiça. Provavelmente é um passo necessário na formação de uma pessoa (deve haver extensa literatura sobre este assunto da psicologia infantil e confesso, desde já, a minha ausência de referências) e pode mesmo ter moldado as éticas primitivas das primeiras culturas (como o 'olho por olho, dente por dente').

O importante para este texto é a constatação de que há comportamentos em adultos similares a esta proto-ética. Um exemplo. Num campeonato de matemática que organizei, há uns anos, aconteceu haver 200 livros para oferecer a 250 alunos participantes. Houve professores que sugeriram que, como não poderíamos dar um livro por aluno, para não ferir susceptibilidades (das crianças, imagino), mais valia não dar qualquer prémio de participação. Isto, para mim, é o raciocínio mental típico de uma criança. Era evidente que apenas os 200 melhores classificados levariam prémio de participação, ou seja, havia um critério objectivo e justo para a atribuição dos referidos livros e devia ser aproveitado. Esta segundo opção é tão evidente, e de tal modo mais apropriada, que fiquei surpreendido que alguém quisesse preteri-la pela primeira opção. Mesmo que não houvesse um critério hierárquico evidente, como a classificação do campeonato, haveria sempre o recurso ao aleatório. Ao quebrar a causalidade, uma lotaria garante a eliminação de vários critérios preferenciais e injustos. Uma lotaria para entregar 200 prémios a 200 de 250 crianças é sempre melhor que negar tudo a todos por incapacidade de recompensar a todos por igual. A ética é um exercício sobre recursos limitados, não é um tudo ou nada resultante do confronto entre o real e a fantasia.